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Prosa - 1970 / 2001

 

2001

 

 Diário dos Açores

 

14-09-2201

            

     Vou de encontro às minhas raízes. Já sobre o Atlântico, que tantas vezes me fez sonhar, entro numa contagem decrescente que me levará a pisar o solo da Horta, após mais de 23 anos de ausência dos Açores.

           

     Tento racionalizar os meus pensamentos, entender o impulso que me fez abrir o bloco de notas e escrever, mas sinto apenas um vazio. Uma certa angústia, é certo, mas sobretudo os pensamentos a esvaírem-se com os estalidos dos ouvidos, provocados pela altitude.

           

     Vou a caminho. Será um regresso? Um encontro com o passado? Uma ajuste de contas comigo mesmo? Não sei responder a nada, não tenho ideia nenhuma. Apenas a vontade de escrever, talvez para matar o tempo, estupidamente perdido neste incómodo assento do avião.

..........

           

     Vamos a metade do percurso e continuo sem saber o que escrever... Também nem um whisky para dar uma ajuda... É caso para dizer que me sinto mesmo nas nuvens, amarrado a uma cadeira de avião, a caminho dos Açores.

..........

           

     À medida que me aproximo, começam a surgir algumas recordações, boas e más. Mas a memória foi filtrada pelo tempo, encarregando-se de soterrar as menos boas, purificando-as como o mar faz com a areia. Aquelas ondas da praia da Alagoa, que me envolveram tantas vezes num abraço violento, mas leal, ajudando a fazer-me homem.

           

     Até agora ainda não encontrei ninguém conhecido no avião. Olho para algumas caras, como se me fizessem lembrar alguém, mas não reconheço as pessoas, nem elas a mim. Será que no aeroporto encontro algum antigo colega de Liceu? “– Olá, pá!.. Ao fim de tantos anos...”. Será que ainda se lembram de mim? E eu deles?

           

     Sei que muitas coisas estão mudadas. As pessoas também, que o tempo não perdoa. É inexorável, o maldito tempo. Mas tanto que já não saiba quem são? Talvez não, há sempre traços, os olhos, o sorriso longínquo. Mas os nomes... Pois, os nomes vai ser mais difícil. Logo se vê...

..........

           

     A trepidação das ilhas. Começou agora, como manifestando a inquietude de ser ilhéu, sem bem me lembro e ainda me reconheço. É um pouco como o mar, revolto, mas afável, rude, por vezes, mas também acolhedor. Reservado e reactivo, tolerante e rebelde, pronto para se afirmar. Pelo menos era assim no meu tempo e não me consta que tenha sido domesticado. É assim porque assim deve ser, amigo, companheiro, mas mantendo as distâncias.

           

     Começou a descida. Vamos dos 10.800 metros para quase 0 de altitude. E eu dos 48 para o período em que frequentei o Liceu da Horta, só cá vindo umas três ou quatro vezes, por espaços curtos, quase apagados da memória, a última há mais de 23 anos. Imagino os amigos de então, as conversas, os convívios. Será que alguns ainda estão na ponte da Conceição, à minha espera?

           

     A Ilha do Faial vai aparecer na janela a qualquer momento...  Esta deve ser S. Jorge... Olha o Pico! Tudo verde, como as leiras que apanhava para fazer o presépio. É essa a imagem do ar. Um presépio gigante, ainda sem vida. A trepidação, a trepidação das ilhas, a anunciar a aproximação ao aeroporto. As pastagens, o recorte das escarpas, a espuma beijando as rochas, o mar lambendo a lava. A pista a correr velozmente para o fim, suficiente, sem desperdícios nem roubos desnecessários à natureza. Calor. Amolecido pelos aguaceiros que lavaram a pista e o estacionamento, quase me fazendo lembrar um clima tropical, o de Macau.

..........

           

     Cheguei. Parece tudo quase igual ao que deixei. Pelo caminho também. Mais casas novas, as mesmas casas velhas. Ah, o novo hipermercado, a marina, o novo quarteirão entre o Faial Sport e a igreja da Conceição.  A casa, a minha casa. Não a de origem, que essa ficava no Pico, mas a da Horta, a do Liceu. A subida íngreme, de umas escadas fora das normas. A casa, a casa onde comecei a pensar, a escrever, nesta mesma escrivaninha.

           

     Tudo me parecia então grande e quase belo, agora velho e inutilmente sem função. Mas tem ainda, para a minha mãe, simplesmente porque são as coisas dela, a que está habituada. A mim, até as portas parecem estreitas, os quartos minúsculos, mas fui eu que mudei, não a casa. As coisas permanecem imutáveis, mais velhas é certo, mais usadas, estragadas, mas as mesmas que enquadraram parte da minha vida e me serviram durante mais de sete anos. Fica-me esta primeira sensação. Quase nada mudou, apenas eu, que vejo agora as coisas de maneira diferente, nem com saudades nem com desgosto, apenas de forma objectiva. Provavelmente já não conseguiria viver nesta casa, mas sinto-me bem nela, como embalado por recordações ainda vivas, mas que pertencem ao passado, ao meu passado.

           

     À noite, percorri as ruas da cidade, da Conceição ao Largo do Infante. Tudo igual, não fora as obras de recuperação do último terramoto e o que está reconstruído ficou bem, mantendo a traça, a imagem de marca. Mais uns restaurantes, comércio, mas de resto tudo lá está, no seu devido lugar, como eu queria que estivesse, para que as minhas memórias não fossem em vão. Para que as recordações fossem exactamente as que queria recordar. O Teatro Faialense, infelizmente ainda fechado, o coreto da Praça da República, onde tantas vezes toquei com a Artista Faialense, os Bombeiros, o Mercado, a Polícia, a Matriz, a Câmara, O Telégrafo, onde trabalhei um mês como revisor e proto jornalista, a tabacaria dos livros, o café dos pequenos almoços, o Liceu. Nem um centímetro se afastaram do lugar, onde sempre estiveram. E era isso que eu queria ver e sentir.

           

     Dizem que vai haver música na Praça do Infante, apesar dos aguaceiros que ameaçam. Lá estão os músicos da filarmónica, espalhados, alguns nos bancos do jardim, com as mulheres ou namoradas. Pois, gostava de ouvir, mas não é a Artista Faialense, é outra. Ainda se fosse... Matava saudades dos tempos em que, com aquela farda azul escura de botões polidos e sapatilhas brancas, andava pelos coretos e estrados improvisados a abrilhantar festas. Quase sinto nos lábios e nos dedos o clarinete novinho em folha. Os momentos em que perdi a noção da realidade, deixando-me contagiar, conduzir, pelo som da filarmónica, como se estivesse num mundo irreal, o meu mundo. Era quando a pauta deixava de ser necessária. A música surgia de dentro, provocando arrepios, transcendendo. A música era como que o sopro de cada alma, que o maestro refreava para manter a harmonia. E o toque da alvorada, em cada dia 1 de Dezembro, em que não se dormia... Às cinco da manhã lá íamos tocando o hino da restauração (Ó ti Zé das barbas brancas... ), colando umas campainhas nos intervalos, como que para despertar os de sono mais pesado. Era assim, nesses bons tempos, de vivências despreocupadas, de poucas apostas no futuro, apenas vivendo o dia a dia, contando com as coisas nos seus lugares.

           

     Mas nem sempre é assim. A maldita actividade sísmica, de vez em quando, resolve despertar, revolver a terra e fazer as coisas caminharem mais depressa para o seu fim. Obras, obras por quase todo o lado. Recuperando, reconstruindo, devagar. Demasiado devagar para reconstruir a memória, as minhas memórias. Raramente adulteradas, mas são as concessões ao progresso, à funcionalidade. Não é isso que está mal, os meus olhos é que ainda vêm o passado, queriam ver tudo como era dantes.

 

 15-09-2001

            

     Visitei a campa do meu pai. Pensava poder comprar flores perto do cemitério, como em Lisboa, mas não. A minha mãe, precavida, trouxe um ramo artificial de casa. Foi essas que lá coloquei, na campa do meu pai. “Á memória de... da sua mulher e filhos”. Não sabia. Não sabia que deixara de se filho único. E não deixei, ao que parece. Enganaram-se, acho. Que eu saiba, e pelos vistos a minha mãe, que mandou fazer a lápide, o meu pai só teve este filho, eu. Se outro teve, não me importaria de os conhecer, mas não, é mesmo engano.

 

     A fotografia do meu pai, ainda com alguma juventude. É a de um homem bonito, sensível, o pai que eu tive. Quase não conversei com ele, mas não me senti desiludido. A verdade é que não gosto de conversar com campas, nem com fotografias. Prefiro fechar os olhos e sentir que ele me escuta, que ouve os meus pensamentos. É assim que gosto de conversar com o meu pai. Como o faço agora, escrevendo. Sentindo que esta energia que somos passa para além do físico, viaja para além da imaginação, transportando-nos para uma dimensão dos sentidos.

 

     É assim que gosto de conversar com ele, o meu pai. Tal como ele conversou comigo, no momento da sua morte. Não sei o que queria dizer-me nos poucos segundos em que pode voltar a sua energia para mim. Eu não entendi logo, senti-me mal disposto apenas, sem razão aparente. Mas daí a pouco veio a confirmação. O meu pai lembrou-se de mim na hora da sua morte.

           

     A Artista Faialense. Agora instalada junto à igreja da Conceição. Bem diferente do barracão nas imediações da Torre do Relógio. Mas foi lá que aprendi a gostar de música e a entendê-la. Já ninguém conhecido, mas o mesmo espírito de outros tempos. Um jovem, ensaiando tuba, prontificou-se a mostrar-me as instalações. E depois lá veio o vice-presidente reavivar as memórias com fotografias e nomes. Acho que me encontrei numa delas. Devia ser, de clarinete na mão, em pose, no meio de caras conhecidas. Imperdoável não recordar nomes, mas que se podia esperara ao fim de tanto tempo...

 

16-09-2001

            

     Imaginam o que é estar a falar animadamente (pelo menos tentando...) com quatro pessoas, como se fossem velhos conhecidos, sem nos lembrarmos rigorosamente de quem são? É quase patético, constrangedor. A todo o momento sentimos que nos vão topar, entender que estamos fingindo, como um actor que não sabe o papel, metendo buchas nas deixas dos outros. Nem caras, nem nomes, nem nada.

           

     Mas eles sabiam quem eu era, chamaram-me ao longe, pelo nome. Eu fui, abrindo um sorriso largo, dispensando beijos e abraços. Que vergonha! Mas não me descosi. Não podia. Ficaram ofendidos, pensei. Não sei se se aperceberam, mas a conversa foi fluida, inflectindo, por vezes, por imposição minha, não fosse o diabo tecê-las. Virei o jogo para o meu terreno, onde sabia que não haveria lugar a fífias. Sim, porque um deles fora meu colega na filarmónica. Até sabiam que tinha andado por terras do Oriente, imaginem. Coisas da minha mãe, claro. Falou-se de África, a propósito do tempo e da proximidade de um tufão. Fiquei a saber que não sabiam onde ficava Macau, nem isso interessava também. Admirou-me mais haver tufões por aqui. Julguei que lhe chamavam furacões, mas a globalização tem destas coisas.

           

     Lá nos despedimos, como velhos companheiros. E lá veio outro. Esse sim, lembrava-me bem. Do rosto, do corpo avantajado, apesar da diferença de idades. Agora foi ao contrário, o que me causou algum sossego, uma sensação de empate técnico. Bastante mais velho, o antigo colega foi relembrando. Falámos do passado, recordando momentos, pessoas, até o nome do outro com quem acabara de conversar, forçado por mim, num surto momentâneo de falha de memória.

           

     Não seria o único momento de constrangimento que se me iria deparar. Nesse mesmo dia, outras pessoas iriam fazer-me pensar que a minha memória estava a necessitar urgentemente de uma dose maciça de fármacos de actuação rápida. Mas afinal, não estava tão mal assim. – Se te visse sozinho não te reconhecia, mudaste de feições e estás mais gordo! Claro, se não estivesse com a minha mãe sabiam lá quem era. Nem eu sabia quem elas eram também, claro. Agora essa do mais gordo... –  Um pouco mais de barriguinha, ia dizendo.

 

17-09-2001

            

     Dei a volta ao Faial, num carro emprestado por uma amiga da minha mãe. Até aqui nada de especial, a não ser a simpatia dela e do marido, gente sã, como devia ser toda a gente. A novidade é que foi a primeira vez que percorri o perímetro da ilha de seguida. Tal como só dei a volta do Pico nas mesmas circunstâncias, muito anos depois dali ter saído.

           

     Relembrei nomes curioso, como os Espalhafatos, revisitei locais de sempre como os Capelinhos, impressionando-me ainda com a paisagem e o farol, quase intacto, ao lado de ruínas de casas completamente soterradas, e o Porto Pim, em dia impróprio para conviver com o mar, no segundo dia daquelas fúrias que lhe dá, vá-se lá saber porquê. Os respingos desfocaram a objectiva da câmara de vídeo por completo, que mesmo assim registou aquele rugido, não de fera ferida nem da agonia das baleias outrora lancetadas, mas de inquietude.

     É isso. Nem raiva nem fúria, inquietude. É assim o mar dos Açores, o meu mar. Até hoje nunca pensei porque ficava assim, mas agora penso que padece do mesmo mal que os açorianos. Nós sentimo-nos rodeados de mar, ele sente as ilhas dentro de si. Acho que ralha com elas, não porque não as sinta como filhas, mas apenas para se fazer lembrado. Talvez mais até para o contemplarem, como eu e muita gente fazia hoje. São rebates de melancolia, de quem só não é esquecido se não fizer sentir a sua presença, do modo que o pode fazer. Lambuzando as rochas, respingando para as estradas, gritando: “- Sou eu, estou aqui!”

           

     É assim o mar dos Açores, o meu mar. O amigo com quem bailava, uma espécie de valsa. Um, dois, três. Um, para dentro, com  a vaga. Dois, virando o corpo, dobrado. Três, para fora, com o refluxo. Pelo caminho, lapas, lapas, que iam saltando da ponta do lapeiro de chumbo e que iam enchendo o saco pendurado da cintura e fazendo pesar o corpo, cada vez mais. Era uma dança quase mágica, de contorcionismo, roçando a ponta das rochas submersas. Marcas de um amor, mais de paixão, mais de compulsividade, como acto de teste aos limites. Do racional, do físico, mas inebriante, quase inconsciente, numa masturbação de orgasmos múltiplos em que a espuma era o sémen e o respirar fora de água o retomar de novo coito, até as forças acabarem. Até o saco das lapas pesar demasiado.

           

     Mas havia também os polvos. O bucheiro curto, à cintura, feito à medida, lá estava, pronto para acompanhar o olhar sempre atento a um possível acréscimo da faina. Um buraco típico, um raio mal escondido, eram o sinal. Escarafunchar, empurrar, puxar. E com sorte, lá vinha ele, esbracejando, preso no anzol, despejando a tinta. Rumar a terra, batendo as barbatanas era agora imperioso, para lhe virar o capucho. Pelo caminho, convinha mantê-lo à distância, não fosse agarrar-se ao corpo.

           

     Lapas e polvos. Mais lapas que polvos, claro. Um modo de ganhar uns trocados, para um miúdo sem posses. Quando outros estavam na praia, refastelados, percorria a costa da Espalamaca quase até à praia do Almoxarife, nadando, mergulhando, apanhando lapas, caçando polvos. Demorava horas, descansando, por vezes, nas rochas. O Senhor Cardoso contava com o meu produto. Contava e não contava, porque sabia que só uma ou duas vezes por semana eu aparecia com os petiscos, sem dia certo. Quando me faltava o dinheiro. Mas comprava sempre, mesmo que já estivesse abastecido de outra fonte mais certa e segura. Isto era apenas no verão, quando tinha férias e estas eram para gozar. Lapas e polvos eram também prazer, mas tão intenso não convinha ter todos os dias, senão passariam a obrigação.

           

 

 

     Nem todos os verões foram assim. Passei pela fábrica da conserva, até ficar farto de atum. Durante anos nem pude ver as latas. Trabalhei também no O Telegrafo durante pouco mais de um mês, como revisor e não só. No não só ouvia as notícias, seleccionado as mais importantes para a terra e aprendi a tesourar um cardápio de curiosidades para encher ou chouriçar o jornal. Religiosamente, todas as tardes, tinha de saber quantas toneladas de atum haviam sido pescadas, para actualizar o ranking das traineiras, nem sempre bem gerido com justiça e equidade, face aos predicados vocais do meu ex-patrão, o dono da fábrica de conserva, continental. E ainda tinha o tempo, que lá tive de inventar umas quantas vezes, modificando ligeiramente a previsão do dia anterior, também por dificuldades de comunicação. Não sei se errei ou acertei mais vezes que o serviço oficial, o certo é que ninguém se queixou. Pelo meio, fiz uma reportagem e algumas notícias locais. De revisor de provas, estava quase arvorado em jornalista. Mas a praia, o sol, o mar não se compadeciam com um futuro tão promissor.

           

     Foi aí que resolvi que férias eram para descansar e se pode sempre aliar o útil ao agradável. Com o pagamento de revisor e jornalista improvisado, comprei máscara, barbatanas e fundi o meu próprio lapeiro num molde de areia. Um serralheiro conhecido fez o favor de soldar o anzol a uma haste de ferro, mais curta que o meu braço, com uma orelha na outra ponta, donde saia um cabo de naylon de metro e meio, para manter à distância algum polvo de maiores dimensões. Era o meu bucheiro. E assim me fiz apanhador de lapas e polvos, passando a ter uns trocados no verão, sem desperdiçar sol e mar. Do Faial ao Pico, incrementando o negócio, nas festas de S. Mateus. Numa delas, dei tanto dinheiro ao Santo que quase me arrependi do prometido. Mas promessas são promessas, claro.

           

     Hoje, ao ver o mar, assim revolto, ao recordar as muitas valsas que dançámos, acho que fiz tudo isso por paixão, mais do que por necessidade. Bravo, manso, inquieto apenas, é o mar dos Açores, o meu mar, onde queria sentir-me de novo embalado, conduzido naquele baile descontínuo, moldado à corrente e às rochas, esquecendo o tempo, enchendo o saco das lapas, de memórias, de imaginário, das recordações que me envolvem neste regresso às origens. Parece-me que o mar está zangado apenas comigo, com o filho pródigo, que se esqueceu de lhe prestar vassalagem durante tanto tempo.

           

     Filho que também navegava por ele, com uma chata transformada em embarcação à vela, esta cosida na máquina da minha mãe. Tão artesanal que o Capitão do Porto, de braços cruzados, olhava-me quase incrédulo, a ver-me aparelhar aquela engenhoca. Içar a vela e o estai, por um processo pouco ortodoxo, voltar a chata de lado para fixar o patilhão de metal na quilha, empurrá-la para o mar, até ter profundidade suficiente para endireitar aquela coisa e só depois saltar para dentro dela e rumar a meio da doca da Horta,  devia fazer tilintar na cabeça do homem, puxando da sua sabedoria náutica, a vontade de apreender a chata e mandar-me para casa. Mas não, nem dizia nada, apenas olhava. “ – Coitado do rapaz, é maluco, mas tem tanta vontade e engenho que não tenho coragem... “, devia concluir. Mas a verdade, é que o raio da chata navegava. Mal, mas lá ia da doca até à praia da Alagoa e voltava. Até os lusitos da Mocidade Portuguesa gozavam com a tartaruga. Também como podia andar mais depressa se, mesmo após mais de uma semana de diligente calafetagem, continuava a meter água e a solução foi mesmo encharcá-la de alcatrão... Se era pesada mais pesada ficou, mas navegava, isso ninguém podia negar, nem o Capitão do Porto.

           

     Tudo me era permitido então, porque estava no meu mar, o mar dos Açores. O mar que agora está zangado comigo e que nem ao Pico me deixa ir. E tem razão. Não lhe paguei o tributo devido. Não soube, na minha ausência, render-lhe homenagem. Não soube manter as minhas raízes. Perdi os elos, o contacto. E não há nada pior do que perder o contacto com o mar dos Açores. Passamos a ser continentais, estrangeiros. Tem razão o mar dos Açores, o meu mar. É natural que agora não me deixe ir à minha terra. Já o contemplei hoje, várias vezes, registei o seu desagrado, nas vagas e nos murmúrios, para nunca mais o esquecer. Mas deve estar à espera que ainda vá à praia da Alagoa, já sem areia, mergulhar às lavadias, brincar com ele, retomar as danças inacabadas, para me envolver na sua espuma, como se estivesse a ler as minhas impressões digitais, certificando-se da minha autenticidade. “- Demoraste, mas aqui te tenho de novo, diferente, mas igual. Mais velho, mas o mesmo. O mesmo rapazinho que deixava desafiar-me e por isso protegia da insensatez. Mais pesado, menos ágil, mas o menos rapazinho solitário, tão solitário como eu.. “.  E lá fui. Não meter-me nele, mas apenas conversar, vendo-o entrar pela ribeira, fazendo-a correr ao contrário, como se me cumprimentasse, como se me respondesse e perdoasse.

           

     Acredito agora que, vencidos fantasmas, foi um reencontro de velhos amigos. O mar do canal vai deixar-me ir ao Pico e regressar ao Faial com destino a Lisboa. Porque é de novo o meu mar, o mar dos Açores.

 18-09-2001

            

     Começo a ficar cansado de tanto andar a pé. Mais cansado ainda de encontrar gente que fala comigo, como se não nos víssemos desde a semana passada. Cansado não dos reencontros, mas do esforço que vou fazendo para descobrir na memória lembranças que não encontro. Como se tivessem sido apagadas, filtradas não sei com que critérios. Noutros casos, as recordações saltam em catadupa, como se as estivesse a viver hoje. Talvez por ter privado mais com uns do que com outros, por ter gostado em especial de alguns. Mas esses não são muitos, e deles recordo-me bem. Os outros é mais fácil lembrarem-se de mim, até porque agora sou uma avis rara, de arribação tardia.

           

     Essa ideia conforta-me. Afinal não tenho a memória tão desfragmentada. Apenas foi gravado em primeiro plano o que tinha mais força. O resto vai sendo procurado com alguma lentidão e nalguns casos com busca sem resultados, como montando um puzzle a que faltam peças essenciais. Mas é normal à distância de mais de 23 anos. Se ficasse por cá mais algum tempo poderia completar esses puzzles, mas não, vão permanecer inacabados. Mas isso deixou de me preocupar. Apenas quero saber daqueles que a minha memória não esqueceu. Mais do que um desejo é uma necessidade, de reencontro comigo mesmo, de retoma de velhas amizades.

           

     Este reencontro com as minhas raízes só agora começou. Amanhã vou ao Pico, num só dia. Sei que vai ser de loucos. Tias, tios, primas, primos, sei lá... E já há filhos das primas que eu nunca vi e a elas nem sei se ainda as reconheço. E um afilhado que era um puto, a última vez que lhe fiz uma festa na cabeça. Vai ser bonito vai. E cansativo, mas agora que o mar me deu tréguas, sei que vai correr tudo bem. Mas já estou desejoso de chegar ao fim da tarde de amanhã, para me sentar nesta mesa e escrever para mim mesmo, a reencontrar-me.

           

     Agora falam de cagarras na RTP Açores. Medias de protecção. Lembrei-me de imediato das caminhadas nocturnas pelo Caminho de Cima, em S. Caetano, da casa da madrinha até à minha casa. Uns bons quilómetros, acho. A maior parte das vezes sozinho, um puto da escola primária, sem vivalma à vista, temendo as sombras do luar, sempre a correr. Sempre a correr, pontapeando as pedras, não caindo por quase milagre, em frequentes desequilíbrios.

           

     Mas era ao começo da noite que as cagarras apareciam, nalguns dias, voando sobre o caminho de cima, numa algazarra típica, quase roçando as cabeças. Um cenário digno de Hitchcok, com a diferença de que as cagarras apenas pareciam divertir-se ou querer afastar-se das fúrias do mar, vendo-lhes o recorte, agitadas, no lusco-fusco das noites de lua encoberta. Essa é uma das lembranças que nunca mais vou esquecer. Como de observá-las nos ninhos, nas rochas do porto, agora inquietas pela nossa presença, preservando as crias. Sei que não vou encontrá-las, mas essa memória já não necessito de recuperar. 

 

 

19-09-2001

     E lá fui pelo canal. Desta vez não na Espalamaca mas no Expresso do Triângulo, um navio rápido, pelos vistos importado em segunda mão de algum país nórdico, a adivinhar pelos avisos afixados. Ninguém se deu ao trabalho de cobri-los com autocolantes que dissesse “Proibido Fumar”, “Saída”, “Colete Salva Vidas debaixo do banco”.  Ora, toda a gente sabe isso, e sempre dá um certo ar de cosmopolitismo... Mas é rápido e cumpre a ligação Horta – Madalena em cerca de 15 minutos, muito distante da hora que então se levava.  O mar do canal, consagrado por Nemésio, estava mexido, mas longe da braveza dos dias anteriores. E também, mesmo com um ar condicionado pouco eficiente, nem dava tempo de pensar no enjoo.

           

     A Madalena, o meu concelho, de porto novo, com águas calmas, longe dos tempos em que a lancha da carreira parecia quer subir para o cais ou sair disparada para a rampa de varagem, com os cabos de corda a ranger nos cepos, ameaçando estalar a todo o momento. Os homens da lancha a agarrarem os passageiros que voavam para o cais ou para a cabina. Sim, muito longe desses tempos. A Madalena não está muito diferente, mas dá ares de uma vila que beneficiou do progresso.

           

     À espera um primo, com uma carrinha emprestada de outro primo da Horta. Dá algum jeito ter tanta família. Primeira paragem nas Sete Cidades. Tia, prima, primo. Não demorei, com a promessa de retorno ao fim da tarde pus-me a caminho, reconhecendo cada aldeia, povoação, sentindo o rolar macio dos pneus sob um asfalto recém derramado. A terra do meu pai, Marateca. S. Mateus, com incursão na zona da vinhas. Prima, primo, homens a vindimar. Dois primos e o meu padrinho. Num dos quadrados de paredes de lava, dos muitos a perder de vista que protegem as videiras. Beijos, abraços. Um Chardonney, às 9:30 da manhã. Saboroso, macio, orgulho do primo cuja idade não o impede de continuar apaixonado pelo trabalho da terra. A primeira garrafa de presente, colheita do ano passado.

           

     Com o meu padrinho a bordo, retomamos caminho. É já a seguir a nova paragem. S. Caetano, Caminho de Cima. Madrinha, primas, filhos. Calcorreio com o padrinho até ao cimo daquela parte da estrada, agora diferente. Casas e estrada. Casas novas, erguidas sobre memórias ou reconstruídas. A estrada alargada, com asfalto fresco. A mesma, então de terra batida, repleta de lajes nascidas do chão, por onde descia nos carros de manivela improvisados na casa da atafona. Aquele caminho por onde descia aos solavancos, lutando com o muro da última curva que me ficou com parte da pele e alguns cabelos. Mas lá subia de novo, rebocando o carro, descendo vertiginosamente, com para provar a esse inimigo que não era obstáculo para me vencer.

           

     Ainda é cedo para o almoço. Tempo para percorrer todo o Caminho de Cima, agora de automóvel. No meu tempo não era assim, só carros de boi por ali passavam. As distâncias parecem-me agora mais curtas. Logo ali, o serrado, onde sachei e abarbei com o meu pai, à porfia, como se fosse uma competição. O meu pai sabia levar-me. A minha casa, a casa onde nasci às 11 horas da manhã do dia 17 de Junho de 1953. Foi remodelada. Acabaram com o tanque da água, a sua marca. A água que adorava, fresquinha, bebida num púcaro de alumínio. Devia ser proibido mudar as coisas património de um homem. O meu património. Filmei-a como se filmasse qualquer coisa, por curiosidade. Nem um pedaço da minha alma senti para além daquele portão. Nem este era o mesmo. Desci rápido pela rua abaixo, sem ligar ao casario que a ladeia. Pouco ouvia dos nomes que a minha mãe ia desfiando, como o terço escorre pelos dedos todas as noites. Não vi ninguém, nem parei para me verem. Não tinha mais vontade de ficar por ali, como se fosse um romeiro perante as ruínas da sua capela de devoção, sem imagens para adorar. Talvez também já não fosse dali.

           

     De novo pela estrada principal, até à Prainha do Galeão. Prima, ofertas. Pão de duas farinhas, bolo, queijo. Mais uma etapa, agora o porto. Claro que o tinha de visitar. Igual, apenas mudado nas proximidades. O cais, onde apanhava peixe. Carapaus, peixe rei, castanhetas, sargos..., com isco de figo. Lá estava, lambido pelas ondas. Ah, se o mar não estivesse ainda tão rebelde, descalçava os sapatos, arregaçava as calças e apanhava algumas lapas. Mas não, o mar ainda está sisudo, comigo. Deixa para lá, há-de passar-lhe. Na volta, nova paragem, junto ao antigo caminho do porto. O meu afilhado, coberto de pó da retro escavadora, lá veio. Reconhecia-o em qualquer parte. Tem a cara do pai, falecido há muitos anos, mas que guardo bem na memória. Um baleeiro, um homem de tronco e braços fortes, rijo como os antigos homens do Pico, que caçavam o cachalote.

           

     Regresso ao Caminho de Cima, casa dos meus padrinhos. O almoço já cheira. Galinha frita, linguiça, inhames. Ninguém reclamou de ter comido pouco, coisa habitual por aqui. Comi mesmo de mais. Então linguiça e inhames... Não, sobremesa nem pensar. Mas, que remédio, perante a firmeza do mando da madrinha, avolumando, irremediavelmente o pecado da gula. Pena que não tenha havido lapas e caranguejos, mas o homem a quem o padrinho havia encomendado os petiscos fora peremptório: “- Desculpa lá, mas não vou arriscar morrer para contentar o teu afilhado!”. Paciência, fica para o ano. Talvez que o mar tenha a sua fúria mais apaziguada. Porque me quer dentro dele, eu sei, e faço-lhe a vontade com gosto. Até disse ao meu afilhado: “- No próximo ano, vamos os dois às lapas!”.

           

     O café, tomado onde ainda são os correios da terra, mas num edifício totalmente modificado, em que a fachada foi conservada. Um mini mercado, com um pouco de quase tudo, até roupas. O dono andara pelo Canadá, reassentando arraiais na origem. Não se lembrava de mim, nem eu dele. O que não impediu a conversa amena. Chegou a mulher. Olhou-me por momentos... “- Tu não és o...?”. Era, E também me lembrei dela, vagamente. Mas uma conversa destas é como uma terapia de reavivamento. Coisas de que já nem me lembrava, nunca mais lembrara. E veio outra, outro, outra..., até sentir a cabeça a esvair-se, com se, apesar do almoço e do café, a memória acesa gastasse demasiadas calorias. Mas senti-me bem, comigo mesmo. Talvez por entender que não fora esquecido. Porque o retomar das minhas raízes só teria sentido se tivesse eco na memória dos outros. E tinha. Senti-me reconfortado, tranquilo, bem comigo mesmo.

           

     De volta a casa dos padrinhos, desfiando mais memórias, recordações. Coisas com piada, que nunca soubera ou em que nunca pensara. O pando no dedo, enrolado pela madrinha, para não chuchar no polegar esquerdo.  Sempre repudiei a chucha. Seria sintoma de rebeldia, de auto insuficiência, de timidez? Sei lá, tinha as suas vantagens, ia desculpando-me, não caia ao chão, estava sempre à mão e era meu... As papas de milho, com ovos, todas as manhãs. Um martírio de anos... e nem os milhões de engulhos faziam comover a minha madrinha. Sim, porque passava muito tempo com ela, enquanto a minha mãe fazia costura por fora.  Foi uma segunda mãe, eu sei. Só quase a deixá-los me apercebi de quanto o meu padrinho e a minha madrinha, apesar dos setenta e tais anos, são pessoas bem dispostas, divertidas, felizes. Disse-lhes isso mesmo, não como constatação, mas como homenagem. “- Leva esta fotografia, para te lembrares de nós!”. Acho que perdi, perdi muito mantendo-me tanto tempo afastado deste convívio. Só agora entendo isso. Mas tal como o mar, a madrinha sorri, aparentemente com boa disposição, quando me referia à intenção de voltar no ano seguinte, com mais tempo. “ – Se levaste 23 anos para voltar, da próxima já só nos encontras no cemitério.”. Não sei ainda se ela tem razão, mas a verdade é que fiquei com vontade de voltar, agora que reencontrei as minhas raízes, me reencontrei comigo próprio. O meu adeus é de quem quer voltar, enquanto arrumo mais ofertas no carro. Duas garrafas de angelica, restos do almoço, um naperon de renda com a ilha do Pico, um quadro, também de renda feita por uma das primas. O beijo, soprado na mão, já a caminho.

           

     De volta às Sete Cidades. Tia e primos. Um breve passeio, mais ofertas. Verdelho, Cavaco branco. Vou abastecido de vinhos. Como levo tanta garrafa no avião é que ainda não sei. Até um saco de batatas. Fui de mãos quase a abanar e quase não consigo carregar tanta coisa. E falta a garrafa que me deram em S. Mateus, esquecida em S. Caetano.

           

     O rápido, passando os ilhéus. De regresso à Horta, por volta das seis da tarde. Programa cumprido, à risca. Não tenho ideias, apenas cansaço. De levantar tão cedo, de um dia preenchido, sobretudo de emoções muito fortes. Voltar. Voltar é agora é a única ideia, quase fixa, no meio de um cérebro meio apagado. Acho que sentia medo. Medo de reatar elos perdidos. Receio de que me recebessem com indiferença. Medo, medo de ter perdido para sempre as minhas origens. Mas não, senti-me bem. Como se recuasse 23 anos, como se nada tivesse mudado. Claro que mudou tudo. Mas eu tinha de sentir isso, para me reencontrar e recomeçar. Agora sei que estou pronto. Para recomeçar tudo, não de novo, apenas a partir de agora, deste momento.

 

20-09-2001 

           

     Hoje vou escrever pouco. Porque é tarde e porque também não me aconteceu nada de especial. Manhã sem registos.  Almoço em casa de primos .Linguiça e inhame. Vinho de fabrico caseiro, o melhor do Pico, garantiu o meu primo. Mas, em S. Mateus, o outro primo dizia o mesmo. E o meu padrinho teimou que o dele, só feito de uva Isabel, era superior a todos. Ah, já me esquecia do primo das Sete Cidades que não deixava os créditos por mãos alheiras. Mas esse também fazia verdelho, o melhor vinho de aperitivo do Mundo e isso digo eu.

           

     Finalmente comprei os jornais locais, O Telégrafo e o Correio da Horta. Minguados de páginas. Que pena, pensava que tinham crescido. Acho até que têm menos conteúdo, mas pode ser impressão minha. Numa cidade com tanta vida cultural, com tanta gente ligada à escrita, gostava de ter sentido a mão mais pesada ao pegar-lhes, o pulsar da ilha na sua leitura. Perdoem-me, porque não conheço as dificuldades, mas tentem lá fazer um esforço, espevitem essa gente que gosta e sabe escrever e, por favor, não se diminuam com a presença dos jornais do continente. Há espaço para todos.

           

     Museu da Baleia, à tarde. Uma visita obrigatória, onde se nota o esforço do Governo Regional em preservar a memória da caça ao cachalote.  Um antigo baleeiro explicando. Do modo que só ele consegue. Conhecedor, aberto, apontando ele próprio as lacunas que iriam ser colmatadas, como a ausência de notas explicativas e de apetrechos. Dá gosto conversar com gente assim. Nunca tinha entrado nas instalações da antiga fábrica da baleia, no Monte da Guia, ao lado da praia do Porto Pim.  Mas lembrava-me da rampa, de ver puxar os cachalotes e dos homens a esquartejá-la. Até de um ou outro tubarão que por ali rondavam, chamados pelo sangue que corria para o mar. Lembrança de uma praia que poucas vezes frequentei, já que o meu pouso habitual era a da Alagoa. Mas ia ali, de vez em quando. Mais do outro lado do monte, apanhar musgão, que vendia num barracão ao fundo da praia. Uma outra receita do verão, mais esporádica e sem grandes emoções, a não ser o perigo de uma moreia, pronta a descascar um dedo.

           

     Visitando o museu, ainda me fui lembrando dos foguetes disparados da torre de vigia de S. Mateus, no Pico, replicados por outros no porto de S. Caetano. E os homens a correr, das terras para o mar. As mulheres ao encontro, com o farnel. E o bote descendo a rampa sobre cepos, untados com cebo. Eram uma meia dúzia. Retirados da popa e colocados à proa, numa movimento rápido e constante, para a quilha ir escorregando por ali abaixo. Junto à água o bote parava, esperando o resto da tripulação, os que vinham de mais longe. Depois fazia-se ao mar, saltavam os remos e deslizava pela água elegante, cadenciado, ganhando velocidade. Se a baleia avistada estava perto, seguiam pelos próprios meios. Se longe, lá vinha a lancha a motor ao encontro, enfileirando os botes que ia apanhando pelo caminho. Havia várias. Depois da caça, umas rebocavam os cachalotes para a fábrica, de óleo e farinha para adubo, como a que visitei hoje. Outras levavam os botes de volta, mas nem sempre. Se a faina rendia, ficavam ocupadas com o reboque das presas. Os botes tinham de regressar à vela ou a remos. Eram homens rijos que não tinham direito a pensar no cansaço de muitas horas de lutas com aqueles gigantes. Só em terra, depois de varar e lavar o bote, podiam finalmente descansar. Não se ganhava muito, mas sempre era um complemento à terra.

           

     Hoje sai-se para o mar para contemplar as baleias, navegando lado a lado. Apesar do tamanho, são dóceis. Inteligentes. Entenderam que a caça de outrora fora uma necessidade. O homem dos Açores nunca foi inimigo dos cachalotes, respeitavam-nos. Na luta, caçavam mas também morriam. Era a sobrevivência. O antigo baleeiro guarda recordações dessa altura, mas também recentes. E desta fala como só consegue falar quem conhece bem as baleias. Depois da caça, vestiu o fato de mergulho e nadou ao lado delas, talvez tentando fazer-lhes entender que noutros tempos tinha de ser, agora eram iguais, naquele mar que era de todos, o mar dos Açores. E elas sabiam, compreenderam. Agora convivem com quem as quer visitar, lado a lado. É uma prova de amor. Porque o mar dos Açores, o meu mar, tem destas magias.

           

     Ainda comprei uma lembranças e visitei umas amigas, antes de vestir os calções e mergulhar no sofá da minha mãe, a ver as desgraças de outros mundos, pela televisão. À noite, nova visita. Aos amigos que me emprestaram o carro. Vivem no Farrobo, numa vivenda óptima, bem pensada. Gente de trabalho, divertida, que gosta de viver. O filho estava na Internet. Pedi para ver um site, o da Bolsa. Desgraça. Lá vão os meus pobres tostões por entre os escombros das Twin Towers. Mas que importância tem isso, comparado com os problemas que o Mundo hoje vive... Nesta calmaria dos Açores, onde não sei ainda se dão valor à qualidade de vida e às potencialidades da terra, a recessão que se adivinha pode fazer destas ilhas um paraíso... Gostava de estar enganado...

           

     Vou pensar nisso depois. Agora quero guardar bem a imagem da cidade da Horta, vista da Espalamaca, numa noite, finalmente, de céu limpo. E do Pico, quase descoberto. Assim, até o canal parece mais estreito, com a Madalena quase a um palmo de distância. E o mar, que agora adormeceu, ronrona como um rafeiro, lambendo a lava. Acho que amanhã vou tentar apanhar umas lapas... E chega de conversa, que já escrevi demais.

 

21-09-2001

            

     Penúltimo dia. Logo após o pequeno almoço, ponho-me a caminho da praia da Alagoa. Levo uma faca, umas sapatilhas e um saco de pano, tudo dentro de outro saco, de plástico. O fito são as lapas. As lapas, que mania recorrente. Mas ainda não seria hoje. O mar estava quase calmo, mas a maré cheia. O mar dos Açores resolveu esconder-me as lapas. “- Vingativo, hem!...”. Tudo bem, vou embora sem comer lapas, paciência.

           

     Almoço de linguiça e inhames. Ementa de três dias seguidos. Bom, pelo menos disto mato saudades. À tarde um passeio até à Caldeira, bonita como sempre. Quase me apeteceu descer até à lagoa, mas não me aventurei. Ainda se anda um bocado até aqui de automóvel. Mas já fiz o mesmo percurso a pé, várias vezes, e desci. Horas e horas de caminho. Ida e volta. Nem que me pagassem, faria isso agora. A verdade também é que me sinto cada vez mais cansado. Acho que estou pronto para regressar a casa. A Lisboa. Sim, porque a minha casa agora é a cidade das sete colinas. Reencontrado com as raízes, comigo mesmo, vencidos fantasmas, sei que o meu lugar não é aqui. Prendem-me aqui as memórias, mas é com Lisboa que tenho uma relação adulta. Foi onde resolvi que ficava. O que não quer dizer que não me possa fixar noutro sítio qualquer, mesmo aqui nos Açores, mas por opção de trabalho ou de vida, não por sentimentalismo. Acho que nisso sou desprendido, adaptando-me com facilidade, ou não fosse açoriano.

           

     O jantar em casa em outra prima. Muitos primos e primas tenho... E mais amigos ainda, mas entendi que, desta vez, deveria dar prioridade à família. Por a ter no sangue mas também porque só ela me poderia devolver as raízes, permitir o meu reencontro. Ainda a caminho, outro colega, de liceu, um pouco mais novo. E lá vieram as recordações, os nomes, as diversões. Fazia-mos algumas, sem consequências para ninguém, mas com alguma piada. Ao passar a ponte da Conceição, vi-me ali numa noite, enrolando linha de coser de um lado ao outro, até esvaziar o carro surripiado à minha mãe. E o homem da moto, ao sentir-se enredado, como numa teia de aranha, atónito... Nunca deverá ter entendido o que lhe aconteceu nessa noite. E nós, escondidos, contendo as gargalhadas até que ele se foi.

           

     De regresso, o irmão de outro colega, colega mais velho, um dos responsáveis pela Mocidade Portuguesa e comandante de acampamentos. E lembrei-me de quando me deram as divisas de chefe de quinas e me atiraram ao mar, como baptismo, nas férias da Páscoa. Eram divertidos os acampamentos. Até inimigos, com espingardas de pressão de ar, tivemos, vencidos por um destacamento que os apanhou pela retaguarda, numa manobra militar improvisada mas eficaz. Por aqui nada estava politizado. Claro que as formaturas e a doutrina lá estavam, a que propositadamente me baldava, encharcado da água do mar que galgava a avenida agora rebatizada de 25 de Abril. “- Vai pra casa, antes que apanhes uma pneumonia!”. Mas os acampamentos e convívio não tinham nada de político. Eram saudáveis. E era tão novo. Sabia lá o que isso era...

           

     Hoje é que não escrevo mesmo mais. Vou deitar cedo. Repor o sono em falta. Amanhã ainda estou cá e há afazeres sociais a cumprir.

 

22-09-2001

            

     Visitas, visitas. Despedidas rápidas que não sou de grandes falas. Almoço no Capote, sobre a avenida marginal, a 25 de Abril. Prepara-se um regata, várias. Optimists, lá ao fundo talvez um 720. Saudades da minha chata, do tamanho de um Lusito que, com pouco vento, levava mais tempo entre a doca e a praia da Alagoa que a Espalamaca entre o Faial e o Pico, com ida e volta. Mas navegava, lá isso navegava.

Fiquei um pouco desiludido. Esta levo na bagagem, como um engulho. Não comi lapas. Afinal a minha mãe tinha-as encomendado como surpresa. Mas o homem não apareceu. Nem homem nem lapas. Deve ter tido medo do mar. Está com vaga grande, intermitente. Não permite, acredito, apanhar lapas por terra. Mas pelo mar, Santo Deus, tantas vezes que apanhei lapas com mar bem pior. Contratou o homem errado, a minha mãe. Ah, se tivesse o meu equipamento..., ainda sobravam lapas para dar à família e aos vizinhos. Ironia do destino, no restaurante há lapas congeladas. Onde já se viu... Lapas congelas e para grelhar. A lapa quer-se fresca, comida no momento, crua. Basta um concha para retirar o conteúdo de outra e assim por diante. Lembro-me dos continentais que faziam cara de enjoados. Para piorar, ainda se lavavam as lapas em água doce. Não sabiam a nada. Mas aprendiam a gostar. Raio de coisa, nem uma lapinha minúscula para provar. Tivesse eu equipamento...

 

     Mas deixa para lá. São horas de fazer a mala e esperar o transporte para o aeroporto. Ainda este ano hei-de comer lapas no Algarve e gozar com a cara de espanto dos pescadores a olhar para mim, incrédulos, vendo-me comê-las tal como a natureza as criou. Não sabem comer lapas como os açorianos, não as saboreiam. A minha mãe diz que me manda lapas pelo próximo portador, mas não quero. Quero-as frescas, do momento. Isso é que são lapas!

 

     Vou embora. Falta pouco. Já escrevi de mais, já me repeti muitas vezes, sei. Fui escrevendo como sentia e as recordações misturam-se, interligam-se, refazem-se.  E fica muito por contar. O Liceu, as mascaradas do Carnaval... Sei lá, tanta coisa. Não me apetece escrever memórias, apenas impressões. As que me tocaram neste regresso de filho pródigo aos Açores. Vou embora, vou partir, como diz a canção. Mas fico agora. Desta vez fico. Sem fantasmas, sem receios. Fico porque quero ficar. Ligado aos Açores, ao Pico, ao Faial. Fico como deve ficar um açoreano, ligado à sua terra. E é tão perto. A duas horas de Lisboa. Menos do que o tempo que levo até ao Algarve. Tenho de vir mais vezes, mas não em romaria. Para sentir, viver. Para me reconciliar definitivamente com o mar, a minha paixão de sempre. Acho que fizemos as pazes. Olhei para ele, num último adeus, sondando-o até às profundidades. Ele respondeu com um salpico, ronronando... É o meu mar, o mar dos Açores.

 

     Mais despedidas. Não gosto de despedidas. Na despedida perde-se qualquer coisa que pode nunca mais se encontrar. Gosto apenas de encontros, de reencontros. Acresce a algo que já se tem. É recomeçar do que ficou. Basta não perder nada para ficar tudo. É disso que eu gosto. Só aceito despedidas que digam “. Até logo!”. É como me quero despedir das pessoas e dos Açores. “- Até logo!”.

..........

           

     Deve ser da altitude. 11.277 metros, com 52.º graus negativos. Ou do ar que me sai pelos ouvidos, ao apertar o nariz. Mas estou de novo de cabeça vazia. A meia hora de Lisboa. Volto a casa. Já tinha decidido que Lisboa era agora a minha casa, apesar de ter ficado nos Açores. Como quem fica quem parte, mas sabe as suas origens. Já comia linguiça com inhames, em vez desta refeição de treta. Não entendo, mas quase toda a tarde andei enervado. Agora, que me sinto melhor, tento perceber. Mas não atino. Tenho mesmo a cabeça vazia.

           

     Daqui a pouco avistarei Lisboa. Não é tão bonita quanto os Açores. Já não é tão bonita, para ser mais objectivo. Mas é o lugar onde vivo. Estrangeiros, muitos, neste voo. O puto de cabelo loiro, eriçado como uma crista de galo estremunhado, não pára quieto. Mexe em tudo. Passa debaixo das pernas do pai, bloqueia o corredor. Desinibido, de chucha na boca. O mapa no LCD, a mostrar o percurso. Parece tudo tão perto... Horta, Funchal, Casablanca, Marraqueche, Faro, Lisboa... Mas há o mar. Muito mar a separá-las.

           

     Já desce. Os ouvidos tampam. A temperatura sobe. Estou quase em casa, ao cabo de uma semana de emoções fortes. Percorri o passado, exorcizei demónios.  Era isso que queria. Ficar bem comigo mesmo, reencontrando-me nas minhas raízes, no meu mar, o mar dos Açores. Acho que era isso que procurava. Foi o que encontrei, tanto quanto entendo o que me aconteceu. Era necessário, inevitável. Só faltou sentir o mar envolver-me. Ficam os salpicos...

           

     Estou quase a aterrar. Cessa aqui a escrita, este diário possível. Fim de viagem. Lisboa... É aqui que vivo agora. “- Açores, até logo!”. 

 

Faial/Pico, 14 a 22-09-2001

 

A Senhora Marquesa

 

     Serão de tertúlia literária. Depois da leitura de alguns poemas, pelos próprios poetas ou experimentados na boca de outros escritores, o ambiente anima-se. Perpassa pelos olhos, pequeninos, algum álcool que, aos poucos, fora libertando os espíritos e aguçando a imaginação. O fumo dos cigarros, charutos e mesmo de um cachimbo de estimação, que aromatizava o ar com cheiro a chocolate, criara uma névoa que transfigurava os rostos, como se todos pertencessem a um Olimpo literário, semi deuses de um mundo da criação. A excepção era a de um abstémio, de quase tudo, encolhido a um canto, que amarelecia a cada baforada que a corrente do ar condicionado teimava em lhe dirigir, como um castigo infligido a quem se atreve ser diferente.

      O repto foi lançado pelo escritor do cachimbo: - Agora uma narrativa original!... Não vale debitar coisa já feita... Nova..., criada agora e aqui!

 Quem vai começar, quem... O mais recentemente chegado, claro, o novato José que, de consagrado, só tinha a aceitação do grupo.

        - Vá, começa lá homem!.

             - Calma, o José precisa de um tema... Vamos lá ver... Tema clássico... A marquesa e o mordomo... ah, ah...

       – Pode ser... Prosa livre, que se lixe o estilo... Vamos lá!

             - Tragam o canapé da senhora marquesa! – gritou José, levantando-se e ocupando o platou improvisado – a boca do “U” formado pelas mesas do convívio. Não lhe agradava aquele protagonismo, mas estava lançado às feras, donde só lhe restava lutar pela sobrevivência. – Bom, lá vai... Mas depois não se queixem...

             - Não percas tempo... vai, vai.

        - Era ao fim da tarde. O sol, em declínio, deixava beijos de despedida na copa das frondosas árvores da outrora sumptuosa quinta aristocrática, reduzida agora a um casarão, meio em ruínas, e a um amontoado de canteiros invadidos pelas ervas daninhas. Ali ou acolá uma rosa espreitava indecisa, como quem estranha o mundo onde as mãos trémulas e enrugadas do mordomo a obrigava, teimosamente, a desabrochar.

            - Muito bem..., mas isso do mordomo velho fazer desabrochar é obra!

            - A velha já não desabrochava ele...

            - Isso parece antever um guião de filme de terror...

            - Silêncio! Deixem o artista continuar.

            - A Marquesa passeava todas as tardes por aquele cenário, percorrendo os escombros do seu passado, até que, cansada, sentava-se no seu canapé favorito, sob uma latada, onde os cachos haviam ressequido, tornando os bagos em passas disformes que nem os pássaros atraíam.

            - Para isso é que querias o canapé... Bem visto!

            - Porra, até os pássaros passavam fome nesse cenário...

            - E a Marquesa não tinha bengala? Daquelas com cabo de prata, incrustada de diamantes?

            - Oh, pá, a Marquesa estava falida, não vês?

            - Olha que vocês são chatos. Deixem ouvir a história!

       - O mordomo, vendo-a aconchegada, de olhos no infinito, abria a caixa de rapé e delicadamente servia-a, ora numa narina ora na outra, limpando com um lenço, que já fora mais branco, os restos do pó amarelado. A Marquesa aspirava num movimento lento que lhe subia os peitos pendurados e quase inertes. Uma veia mais saliente do pescoço engrossava, como se fosse rebentar a todo o momento, salpicando de sangue azul o dedicado, exíguo e esquelético plebeu.

       - Essa dos peitos subirem é boa... E pendurados..., quase inertes... Gaita, a mulher estava falida em tudo!

 - Gosto mais da veia inchada... Não disse que isto era um filme de terror? Estou a ver o mordomo cheio de sangue, espirrado da veia explodida... Credo, que horror!

            - E azul!... Ia parecer uma pintura surrealista... Imaginem que se limpava com o lenço branco. Lá tínhamos um novo santo sudário, agora do mordomo mártir.

            - Ainda por cima esquelético..., ficaria um carimbo dos ossos da cara... A ciência levaria séculos a decifrar.

            - Posso continuar?.... Assim roubam-me a história, ora bolas!

            - Faz favor, excelência..., mas olha..., podias teatralizar um pouco mais, os gestos sempre ajudam à compreensão do texto, neste caso da narrativa.

            - O mordomo ou a Marquesa?... ah, ah...

            - Ambos... depois dizemos se tens mais jeito para ele ou para ela...

            - Sendo assim, não há mais história..., ainda desencanto predicados insondáveis e lá se vai a imagem.

            - Encanto, queres tu dizer... Olhares para o espelho e descobrires o teu lado feminino nada tem de desencanto nem de insondável.

            - O José já corou... Cala-te lá e deixa-o continuar!

            - Onde eu me vim meter... Bem, já nem sei onde ia...

            - O sangue da veia da Marquesa tingiu de azul o mordomo... Ou não era?

       - De vez em quando, um espasmo percorria o corpo da Marquesa. Abria a boca, inspirava fundo e o ar, carregado de relíquias, trespassava-lhe a garganta, salientando-a, como se engolisse, sem mastigar, demasiadas recordações. Ar demasiado rico ou impróprio para pulmões já habituados a uma mistura decadente, seguindo então quase intacto pelo canal digestivo, volteando, comprimindo, expandindo, torneando múltiplos obstáculos de um interior desfigurado pelos anos. O peito e a barriga acusavam a passagem do ar, inchando e recuando, ao mesmo tempo que pela boca saía o som da deflexão do excesso. Era então que o mordomo dizia: - Deus ajude Vossa Senhoria!

       - Essa de engolir relíquias... Valha-nos o Camões, nenhum escritor ousou a tanto!...

            - E a decadência dos pulmões?.. Livra, a mulher estava podre...

       - Gostei do condicionamento do ar no aparelho digestivo... É assim como uma espécie de ar condicionado passando por uma latrina, por uma lixeira sem tratamento...

       - Bom argumento para o Sócrates. Vivam as incineradoras!

       - Oh pá, mas a deflexão do excesso, para significar arroto, é sublime... Dão-me licença que deflicta o meu excesso de ar?

            - Deus te ajude a deflectir, meu filho... Mas continua, continua...

       - A Marquesa mantinha-se imóvel, mas agora com um leve sorriso nos lábios, como se adivinhasse o momento de prazer vindouro. Contraia os braços apoiados no canapé, apoiava-se nas pernas, soerguendo as flácidas nádegas, e deixava sair o ar que resistira ao percurso sinuoso do interior do seu corpo. Aí o sorriso abria-se, quase rasgado, descaindo de novo no canapé consolada, como se acabasse de ter um profundo orgasmo.

      - Logo vi onde isto ia descambar... merda e sexo. Que coisa mais bizarra!

      - Mas dito de uma maneira quase poética... Oh José, da próxima recitas uma poesia.

      - Calma lá, eu até achei piada, mas falta qualquer coisa... Aquele ar eriçando os pêlos púbicos, arejando a vulva...

      - Que complicação para dizer que a mulher deu um peido... Como se pode fazer disso um acto sublime como o orgasmo?

      - Mas olha que por vezes a sensação é quase essa...

      - Mas termina lá, acho que deves estar no fim...

      - O mordomo, serviçal e dedicado, mas com o bom senso de um homem feito pela vida, afastara-se prudentemente para junto das suas rosas, fingindo libertá-las de um fim sem retorno.

     Desta vez não houve comentários. O escritor amarelecido esverdeara, lançando sobre a mesa onde apoiava os cotovelos, num espasmo repentino, catadupas de vómito, com um odor intenso, insuportável, impróprio de quem pouco comia, nada bebia e não fumava... Nesse dia, a tertúlia acabou aí.

 

Lisboa, 10-08-2001

 

A Grande Estrela

 

Esta é uma estória que deriva da história dos reality shows.

 Também podia ser uma estória consequência da história

 ou de um acidente causado pela televisão.

 

     O rapaz estendeu a toalha e centrou-se olhando a piscina. Num primeiro relance, parecia normal, como qualquer outro jovem da sua idade, entre dezoito a vinte anos. Mas, pelos trejeitos, abanar da cabeça, calções de banho – com um símbolo de Big qualquer coisa -, colar extravagante – talvez oferta de alguma tribo africana ou da Amazónia – e corte de cabelo, invulgar no mínimo...  Não, afinal ficava uma certa dúvida.

     Ali perto, duas raparigas olhavam-no com insistência, conversando cada vez mais animadamente, como se experimentassem um titubeante desacordo. A sua agitação contagiara já outras mulheres, jovens e adultas, um pouco em redor de toda a piscina.  O rumorejar ia crescendo, zumbindo e zunindo como prelúdio de uma tempestade sonora prestes a desabar sobre aquele rapaz, um pouco cadavérico, agora de olhos fixos numa pinha aconchegada na relva, como se esta encerrasse um mistério insondável, perceptível apenas a mentes privilegiadas.

     A concentração, de filosófica profundidade, foi interrompida por uma jovem mais atrevida. – Você não é o...? – Sou, ainda não tinha percebido? – respondeu ele como se a recriminasse, e nela a todos, por não o terem reconhecido logo. Quase todas as mulheres e mesmo alguns homens, saltaram das toalhas e de umas poucas cadeiras de praia, como se catapultados por molas, quiçá dissimuladas nos florezinhas, Coca-Cola, âncoras, barquinhos à vela, paisagens e outros desenhos, desbotados de ano para ano pelo suor dos corpos, talvez numa tentativa de publicitar por osmose.

            - E como te chamas? – Eu..., eu... Lúcia... – E eu Andreia... – Eu sou a Maria... – Calma, calma, uma de cada vez! O rapaz distribuía autógrafos freneticamente, com uma destreza que contrastava com o seu anterior estado de zumbi. Escrevinhava em tudo. Bolas de praia, t-shirts, revistas do jet-set, maços de tabaco, telemóveis, chinelos e mesmo por cima de alguns umbigos. Duas desinibidonas, bem redondinhas, não se coibiram até de um toque mais íntimo, nos seios e nas nádegas, retirando a parte superior do biquíni e baixando a inferior, sem tibiezas nem pudores. A mão do rapaz tremeu perante a visão, olhando embasbacado, fixando-as como quando observara a pinha. Deixou escapar uns sons esquisitos, quase como se estivesse a cacarejar ou dando milho a galinhas. Poderia parecer uma atitude anormal, mas não, todos riram, falando e gritando ainda mais alto o seu nome, numa espécie de lengalenga repetitiva que abafava o ruído da avioneta que convocava os fiéis da noite para uma boîte do Algarve.

     O rapaz parecia um padre de confissões rápidas, que concedia a absolvição com uns dizeres e dois beijos repenicados. Fossem mais ou menos pesados os pecados, a penitência era sempre igual. O semblante das beatas também não mudava muito, sempre embasbacadas, aparvalhadas, como se lhes tivesse dado um troço ou um treco, na versão brasileira de arritmia. Algumas até se ajoelhavam, agarrando-se-lhe aos braços, beijando-lhe as mãos. Era preciso despegá-las, como se desgarra uma lapa, tarefa de que as precedentes se encarregavam de bom grado. Saiam cambaleantes, trôpegas, com a mão na cabeça e os olhos no escrito. Duas caíram mesmo à piscina, como se estivessem em desequilíbrio de uma gravidez instantânea e milagrosa.

     Um enxame de abelhas, que trabalhava afanosamente nas flores das redondezas, fãs ou irritadas com tanta movimentação, armaram-se em formação de ataque, dispersando, em segundos, aquela multidão quase enlouquecida. O rapaz ficou só, hirto, de braços descaídos sobre as ancas, como um ineficaz espantalho contratado para espantar pardais. As abelhas voavam em círculo ao seu redor, talvez para manter as pessoas afastadas do seu local de trabalho ou, simplesmente, prestarem também uma homenagem ao ídolo feito estátua. O certo é que ao cabo de infindáveis segundos, a chefe de fila saiu do círculo, picou em direcção à cabeça do rapaz e entrou-lhe pelo ouvido esquerdo, desaparecendo. Ele permaneceu como estava, agora com um ar mais bobo ainda. De repente, deu uns abanões, estremeceu de cima abaixo, produzindo uns gritinhos histéricos e ficou-se de novo. Foi quando reapareceu a abelha, saída do ouvido direito. Os insectos himenópteros retomaram a formação e desapareceram por detrás dos pinheiros. O espanto perpassava todos. O voo da abelha através daquela cabeça célebre era um mistério.

     O rapaz, como que acordando do torpor, levantou os braços, distribuindo acenos e beijos, levando as mãos à boca e exibindo o raquitismo dos membros superiores, abertos num gesto papal. Sempre acenando, ajeitando os lábios, como se ainda beijasse aqueles rostos que o contemplavam e exibiam os troféus de uma tarde em que as revistas sociais ficaram aquém da realidade, dirigiu-se à piscina, bamboleando pelo carreiro de cimento, com se desfilasse numa passagem de modelos. Talvez porque levasse a cabeça demasiado erguida ou por estar demasiado dobrado para trás, salientando um peito liso e desprovido de músculos, ou ainda porque os ladrilhos que ladeavam a piscina estivessem molhados e escorregadios, levantou de repente ambos os pés, projectando as pernas e o rabo para cima, com se levado por uma corrente de ar ascendente, aterrando com a nuca sobre os mosaicos cremes. A cabeça abriu-se como um melão projectado na pedra, deixando cair pouco mais que uns grãos de massa encefálica.

     Mistério resolvido. Mas se célebre era, mártir se tornara. As fãs precipitaram-se. Umas disputaram os bocadinhos de cérebro, não mais de três e, a adivinhar pelos olhares, pouco satisfeitas com a parte que lhe coubera. Outras, desesperadamente, tentavam partir um bocado da caixa craniana, frustradas pela sua dureza. Muitas mãos percorriam o seu corpo, arrancando pedaços, todos, mesmo os mais íntimos, que não deu para repartir entre duas amigas. Uma até, com as unhas mais compridas, arrancou-lhe um olho, mirando-o, hipnotizada, como quisesse alcançar a sabedoria da sua cadavérica fixação.

     Os Bombeiros da Quarteira pouco trabalho tiveram. Limitaram-se a varrer para um saco alguns ossos e as tripas. Todo o complexo hoteleiro fechou, ao que disseram na altura, para desinfecção por uma semana. Quando reabriu, via-se desenhado nos ladrilhos, a tinta vermelha, os contornos do corpo da celebridade, rodeados por uma protecção de hastes de metal e cordões dourados. Algumas manchas de sangue, seco e esbatido pelo sol, permaneciam no chão como testemunho do martírio. Uma placa assinalava o dia e a hora em que o rapaz dera a sua vida pela causa pública.

     A piscina foi transformada em aquário, onde evoluía paulatinamente um tubarão, rodeado de cardumes de peixes com destino traçado. Uma meia dúzia de outros seguiam o predador, limpando-o afanosamente, assim pagando o tributo da sua preservação. À volta, os edifícios foram transformados em centro comercial, onde se vendiam lembranças e pretensas relíquias. Um dedo, que nunca poderia ser dele, porque o rapaz fora totalmente canibalizado nos segundos seguintes ao acidente, custava quase cinquenta contos. O empreendimento de férias, até aí calmo e reservado a famílias, passou a santuário, visitado, todos os dias, por milhares de peregrinos.

  

Vilamoura, 05-07-2001

 

Um homem normal

 

     A piscina estava convidativa, mas pouca gente agitava a quietude da água, que reflectia um céu azul, sem sombra de nuvens. O sol, abrasador, derretia alguns corpos, liquefeitos de protector solar e suor. Dois miúdos chapinhavam no recanto infantil, com chapéus de marketing.

           

     Um homem, dos seus quarenta e cinco anos, com porte ainda atlético, preparava-se, como gestos de ritual, para entrar na piscina. Verificou os tampões de ouvidos, molhou-os na água e colocou-os, um de cada vez, num gesto lento mas seguro. Limpou ou óculos de natação, compôs o elástico e enfiou-o na cabeça, deixando-os na testa. Entrou na água, acondicionou os óculos nos olhos, certificando-se que ficavam estanques, e iniciou a sua peregrinação, parede a parede. Primeiro de bruços, depois com braçadas firmes e constantes, ritmadas.

           

     Começou a ser alvo de alguns olhares. De facto, não era habitual que um homem com aquela idade conseguisse nadar durante tanto tempo e com tal vigor. Além disso era um homem bonito, donde não era de estranhar que dos olhares mais interessados fossem de algumas mulheres, embora de modo disfarçado, pelo canto do olho, ou reparando como que por acaso.

           

     De repente, uma criança, não mais com quatro anos, escapou à mãe, correu  sem travão e caiu na piscina. O nadador, alertado pelos gritos, mudou de rumo e em poucas braçadas retirou a criança da água entregando-o à mulher, lívida e quase paralisada pelo medo, pela borda da piscina. De interessante, o homem passara a herói. Aos agradecimentos balbuciados pela mãe, limitou-se a um distante “- De nada... Tudo bem!”. E voltou a nadar, como se nada tivesse acontecido.

           

     As conversas prolongaram-se por alguns minutos, até que o sol e a inércia das férias obrigaram a retomar o repouso. O pai da criança, que entretanto, aparecera, segurava-a com o nervosismo de quem quase perdera o primeiro filho. De resto, tudo voltara ao normal, naquela tarde ensolarada do Algarve.

           

     Quando o homem saiu da piscina ainda parecia mais atlético, com os músculos endurecidos e salientes. Sobre ele voltaram a fixar-se alguns olhares. O pai do rapazito dirigiu-se-lhe e quis mostrar a sua gratidão, gesto a que o homem, esboçando um sorriso, correspondeu laconicamente, enquanto lhe apertava mão “- Não foi nada, fiz o que qualquer pessoa faria. Não tem nada que agradecer.”. O último agradecimento do pai fora com a cabeça, numa espécie de vénia, indeciso e perplexo perante a atitude.

           

     O homem foi retirando pelo caminho até à toalha os tampões de ouvidos e os óculos de natação, com o mesmo ritual com que os colocara. Deitou-se, abriu paulatinamente um livro e concentrou-se na leitura, como se aquela tarde fosse a mais normal e natural de toda as tardes que tivera. Pouco depois levantou-se, recolheu os haveres e foi-se embora, com a mesma tranquilidade. Com a calma de quem está habituado a ser normal.

 

Vilamoura, 03-07-2001

 

A Gorda

 

     Ele já não sabia o que fazia ali. Deitado, sentindo as gorduras flácidas da mulher, estremecendo a um ritmo estranho. Talvez estivesse a sonhar, a sonhar com dietas que não passavam de meras intenções. E se fosse um sonho erótico? Pela maneira como respirava... E o sorriso podia bem ser de prazer. Não, não podia ser. Ela raramente o procurava e ele fora-se desabituando. E depois, era quase um sacrifício, uma aberração mergulhar naquele monte de gorduras.

           

     Quem diria que há uns anos atrás aquele corpo lhe despertara o desejo, que lhe era irresistível. E na cama, quando lhe abria as pernas e saboreava com todos os sentidos aquilo que chamava de coisinha, estava agora escondida debaixo de banhas, sob uma púbis matizada, cada vez mais, de pelos velhos e brancos.

           

     Aquilo comparado com o corpinho da amante, toda certinha, roliça, sempre pronta a todo o momento, em qualquer lugar, de qualquer modo, até na cozinha, enquanto preparavam o lanche... Um leve encosto, algumas carícias e era ali mesmo.

           

     Não, não tinha remorsos. Habituara-se a esta dualidade, por vezes incómoda, como quem se habitua ao emprego e a um part-time. Não, não era assim. Que comparação infeliz!... De facto, em termos de tempo, a comparação servia, mas não reflectia os sentimentos. Amava a amante, isso sim. Mas não se divorciava da gorda, porque isso seria demasiado complicado. Ou amava ainda a mulher de há uns anos atrás, transferindo para a amante sentimentos adormecidos pelo tempo? Não sabia, nem queria saber. Sentia-se bem assim, nesta dualidade, O prazer redimia os pecados.

 

Vilamoura, 03-07-2001

 

Os Matadores da Lua

 

     Apareceram de repente, vindos não se sabe de onde. Talvez do meio dos pinheiros, que fechavam a vista da praia e o som das ondas que murmuravam canções de amor a alguns amantes que se alimentavam apenas de olhares e carícias sobre a areia ainda morna.

           

     Todos ficaram estupefactos com aquela gente, se gente era. Vestidos de negro, cabeças tapadas, deixando apenas ver-se os olhos. Alguns diziam que faiscavam, reflexo talvez dos projectores que ladeavam a esplanada do restaurante. A outros, pareceram mortiços, amarelados, encavernados em órbitas de um outro mundo.

           

     Abriram os sacos, negros também, retirando engenhos semelhantes a armas de ficção científica. Prateadas, de canos longos, com um depósito de qualquer coisa que, mesmo desconhecida, perturbava a meia dúzia de clientes que por ali jantavam. O mais próximo, talvez o chefe, subiu o pequeno muro que continha a areia, explicando:

           

     “- Não temam. Não queremos fazer mal a ninguém. Não somos assaltantes nem criminosos. Apenas homens e mulheres que não acreditam no amor. O amor é uma palavra vazia de sentido, é uma doença que corrói a sociedade, viciando a razão. É a causa de todos os males, das desavenças, de muitos crimes de sangue. O amor estupidifica, mata com falinhas mansas, destina os mais frios e insensíveis. Dá esperanças sem fundamento. Numa palavra, o amor amordaça, esmaga, fere, rasga, destrói. E hoje, noite de lua cheia, vamos acabar com tudo isso, fazendo renascer os homens e as mulheres, para a realidade. Vamos acabar com esse sofrimento, pondo fim à causadora, à responsável por esse sentimento sem sentido. Vamos matar a Lua!”. 

 

 

     Petrificados, completamente aturdidos, os clientes nem uma pálpebra mexiam. O cão, que antes distribuía lambidelas, abanando a cauda de satisfação, sentara-se encostado ao dono, olhando para o infinito. Os vultos negros apontaram os engenhos para a Lua, num gesto de ritual, estudado, treinado, entoando uma ladainha estranha, cadenciada, arrepiante. À voz de comando, um raio esverdeado saiu dos canos, juntando-se num único feixe que, em poucos segundos atingiu a Lua. O cão soergeu-se, levantando a cabeça, e uivou, em tom lúgubre, como numa despedida.

           

     A Lua começou a desvanecer, tingida por uma mancha verde, depois avermelhada, desfazendo-se em pingos de sangue. Agonizante, murchava a cada segundo, soltando os últimos raios de luar em faíscas multicolores, que percorriam a atmosfera como estrelas cadentes. E apagou-se sem estertor, como apaga o fogo-de-artifício no fim de uma festa.

           

     A lua sucumbira. As estrelas aquela noite, como que por solidariedade e luto, fecharam o seu brilho. As trevas tomaram conta da noite. Os vultos negros desapareceram no escuro como tinham chegado, de repente. O mar que rugira de desespero, segundos antes, afastando os namorados, ronronava agora de dor. Os clientes do restaurante retomaram o jantar. O cão voltou ao seu papel de relações públicas.

           

     Nada parecia ter mudado. Apenas a escuridão que se abatera sobre a noite. As conversas continuavam, mas agora sobre coisas sérias. As mãos despegaram, os sobrolhos franziram, ninguém mais amava ninguém. Nem sentia a falta da Lua. Apenas o cão, sempre abanando a cauda, teimava em distribuir lambuzadelas. Que vida feliz a deste rafeiro!

 

Vilamoura, 02-07-2001

 

1973

 

Abandono

 

     Fosse lá pelo que fosse, naquela noite o tio Gervásio não pregava olho. O latido do cão era um som habitual, misturado com o cantar dos grilos, o gemer do vento surrafando os ramos  do gigantesco pessegueiro de encontro à janela. Mas a ele parecia-lhe que havia algo diferente. Não passava de um pressentimento, uma obsessão...            

           

     A tia Catarina admoestava-o: - Homem, estás a ver coisas. Que há de diferente na noite? O cão, o vento, os grilos..., sempre os ouvi. É a tua cabeça, essa cabecinha que está a ficar velha. Só isso, homem. Ainda por cima não me deixas dormir. Valha-te Deus, homem. Reza e dorme!

  - Não, mulher, não. Hoje há algo de diferente. Eu sinto-o. Tu não dizes que sabes quando a humidade se aproxima pelo teu reumatismo? Eu também conheço as mudanças da natureza nas suas vozes nocturnas. Desde que aqui vivemos, isolados, aprendi a entender o piar das aves, o aproximar da tempestade, as cheias do rio... E hoje sinto que há qualquer coisa diferente, algo de ruim que nos está para acontecer.

  - Homem, já nem sei que te diga. Sempre o mesmo pessimista...

  - Ouviste?!... Santo Deus, é ele, ele... Oh, Deus! Veste-te Catarina. O maldito! Mas não perdes pela demora. Eu mato-te, verás, eu...

  - Aquieta-te, homem. Que vês tu? Assustas-me. Que se passa meu pobre Gervásio? Acalma-te, é uma noite igual às demais.

  - Não, é ele... ele...

  - Ele quem?

  - Aquele maldito, ladrão. Oh! Deus, dai-me forças...

  - Já sei de quem falas. Mas ele não voltará. Nem ela. Perdemo-la. Resignemo-nos na nossa velhice. Nada nos resta mais a não ser o pouco de vida que ainda nos mantém de pé. Ah, como tarda a more, a libertação, o paraíso do bons. Nós sempre fomos bons Gervásio, não fomos? Honestos, tementes a Deus... Não merecemos o céu?

  - Sei lá, mulher, sei lá. Já não sei nada. Tudo é falso, cruel o mundo... Que somos nós? Anda, diz-me que somos nós?

  - Filho de Deus.

  - Já não sei. Filho de Deus... de Deus? Talvez sim, se calhar não. Quando me ouço a mim próprio sei que estou vivo, existo. Quando te sinto ao meu lado, mesmo sem te ver, sei também que tu existes. Porém, se falam dessas coisas esquisitas a que chamam progresso, nós duvidamos da sua veracidade. Custa-nos a acreditar que existam. Agora pensa em Deus. Nunca o vimos, nada dele sabemos. Julgamos tê-lo encontrado mas em seguida sentimo-nos abandonados, desprotegidos, injustamente espoliados do único bem que possuíamos. Chama-lhe bondade e amor, justiça e consolação. Mas onde pára ele? Não estamos nós precisando de tudo isso? Então, porque tarda? Ou será que nem existe e não passa de uma mera criação das pessoas para se consolarem a si próprias?

  - Não sei que te diga. Eu às vezes também sinto o mesmo. Aquele miserável é o culpado... Apareceu por aqui, rondando como um rafeiro, e com o pretexto da caça, levou a melhor presa. Pobre Maria, pobre filha, como te iludiram. Como foste capaz de te deixar cegar, não ouvindo mais a voz da razão...

  - Ouves?

  - Começas novamente...

  - Não, não. Agora não estou a delirar, escuta!

  - Ouço... Parece o som abafado de um sino dobrando a finados. Oh! Deus...

  - Mas não há nenhuma igreja nas redondezas. Impossível. Está noite é de enlouquecer. Eu bem disse, vai-nos acontecer alguma desgraça.

  - Não me assustes.

  - E agora?... Ouves?

  - Virgem Santa, parece o diabo!

  - Parecem gritos selvagens. Vou ver, Catarina.

  - Não, não, tenho medo!

  - Mas não podemos viver neste constante sobressalto. Precisamos saber que loucura é esta que a noite nos traz. Seja o que for, vida ou morte... Eu levo a caçadeira. Tu ficas deitada à minha espera.

 - Vou contigo.

 - Mulher...

 - Não, vou contigo!

 - Pronto, vem lá. Atrás de mim.

    

     O frio cortava. A noite era de breu. Nem estrelas nem lua. Não se enxergava nem a própria mão estendida num instinto de defesa. Escusado acender um candeeiro, morreria antes de entrar na noite, estrangulado pelo vento. Avançaram, pé ante pá, temerosos, embora conhecessem bem todos os obstáculos do caminho, todos os recantos e armadilhas que a noite lhe podia guardar. Mas aquela noite era diferente, por isso mesmo tremiam. De frio, de medo.

           

     O cão latiu. Ouviram novamente o dobrar dos sinos e aquele grito... O cão gania, agora, finado de angústia, Catarina encolheu-se, recuou, obrigando o marido a parar.

 - Não, tenho medo!

 - Medo de quê? Da morte? Nós somos já cadáveres, apenas andamos. É a única diferença. Tanto nos faz morrer agora como daqui a algum tempo. É o mesmo e não sofremos mais. Vem, apoia-te em mim. Nada me assusta já. Verás que a ti também não.

           

     Ela agarrou-se mais forte ao braço do marido, aconchegando-se melhor. também já não sentia medo. De repente, já nada lhe causava pavor. Não tinha afinal conhecido o pior? Então porque temer este novo inimigo estranho e desconhecido? Talvez não fosse inimigo nem nada. Apensa os elementos ou a própria imaginação de duas almas passadas, matutando fantasmas...

           

     Continuaram, tacteando a escuridão. Ouvia-se já o ruído potente da água correndo e mais ao longe atirando-se raivosamente em cachoeira. O latido do cão ficava já ali. O Pastor, o bom cão de guarda, já os pressentira. Atirou-se, afoito, numa doidice estranha, ganindo, tremendo, como possuído de loucura. Gervásio libertou-o da trela.

     - Que tem ele, Gervásio?

- Sei lá. O mesmo que nós, mulher. Quieto, Pastor. Que se passa? Então? Tem-te, cão!

           

     O Pastor regressava à calma, aninhado num monte aos pés do dono. Estranho comportamento daquele possante lobo, bom amigo e vigilante, agora assim amedrontado, sabia-se lá com quê.

  - Gervásio!

  - Calma mulher, calma...

  - Tu tinhas razão!

  - Então mulher?

  - Desculpa, já não tenho medo outra vez.

  - Bem...

           

     E continuaram. Os olhos do Pastor luziam na escuridão, fitando-os aflito, barrando-lhes a passagem. A voz do tio Gervásio era imperiosa. O cão preferiu obedecer, seguindo colado às pernas do dono. Nenhum compreendia o enigma da noite.

           

     Chegavam-se cada vez mais contra o rio. Uma nesga de céu deixava passar uns raios ténues da lua escondida, projectados, vagos e difusos, na borda do rio. Uma reentrância de areia, onde as cheias vinham depositar os ramos e troncos arrancados ao longo do curso. A noite tornara-se menos densa, mas não perdera nada de terrífico.

           

     Aproximaram-se mais do rio. De súbito, tio Gervásio estacou. Pareceu vacilar nas pernas, murmurando:

- Eu sabia, eu sabia... Havia de nos acontecer uma desgraça. A noite era diferente. Eu sei, eu pressinto...

- Que vistes homem? Diz-me!

- Pobre, filha, minha Maria... Ó Catarina, tu não vês? Filha, minha Maria...

           

     Só então Catarina entendeu. Os olhos mais penetrantes do marido avistaram primeiro. Jazia na areia, trazida pelo rio. Os cabelos emaranhados de limos, o rosto...

- Maria, pobrezinha... Gervásio, a nossa Maria veio...  E tu a dizeres que não voltava... Olha para ela...

           

     Era demasiado para os setenta anos da tia Catarina. Os joelhos dobraram-se-lhe. Gervásio amparou-a, contendo a sua própria fraqueza. Era mais urgente cuidar da mulher. Nada mais podia fazer por Maria, a sua pobre filha...

 ........................

 

     Catarina acordou, já a madrugada tingia o céu de vermelho. Um sorriso leve de anjo nos lábios. Gervásio contemplou-a naquela meninice que sempre lhe amara. Afagou-lhe a fronte, sentindo a febre queimar-lhe a mão. Como pudera a vida ser tão crua para quem só fez o bem? Acaso mereciam eles o mal, a humilhação, o sofrimento de uma vida inteira? Porquê? Que pecado, que infâmia haviam cometido? Os pensamentos de Gervásio foram interrompidos pelo delírio de Catarina.

     - Gervásio, nós morremos. Estamos no paraíso, no céu. Nós sempre fomos bons, não fomos?

- Não sei, mulher. Não sei...

 

Lisboa, 1973

 

A morte do Bispo

 

     Sua Eminência, o Bispo, vinha à aldeia. Havia crianças e flores formando filas na igreja, ornamentada também com tapetes e cortinados, colhidos no povoado.

           

     Bastara um sermão bem pregado, um muro na grade secular e o povo ouvira o apelo do santo homem, o velho prior. As mulheres revezaram-se  no asseio com fervorosa impaciência. Limparam os tabuados e o caruncho dos bancos entorpecidos. A igreja reluzia arrancando reflexos pardacentos à face do bom sacerdote. O olhar irradiava celestiais promessas, que o povo comentava murmurando rezas.

           

     Tudo em ordem, em rigor, como o prior exigira. Só o Senhor Bispo, Sua Eminência, se atrasava.

           

     A tarde sufocava. O sol já quase atingira metade da sua trajectória azul e límpida. “- Um dia de bom agouro!”. Nos rostos dos camponeses nasciam fontes escaldantes, que escorriam, ajeitando-se nos colarinhos dominicais.

           

     As crianças fervilhavam, apertadas nos fatitos negros ou nos vestidos brancos, especiais para aquele dia. Acotovelavam-se, quebrando as fileiras. Uma ou outra mãe, mais atenta, corrigia a falta, não raro com um beliscão à socapa, disfarçado de ligeiro retoque, de carícia maternal.

           

     O prior tinha rosas vermelhas no rosto, manchadas se sangue como aquelas que as crianças traziam. Mas só na cor, porque as do prior escaldavam embebidas na transpiração congestionada das suas faces. Todo ele abarrotava e a batina cobria-se de riachos sobre o ventre dilatado. As mãos corriam-lhe do colarinho à fronte, sempre aflitas, tentando conter o dique da sua aflição. Transpunha os muros do adro, olhando a estrada que se alongava sem fim, acalentando esperanças breves. Contendo o desespero, regressava cabisbaixo e triste.

           

     Não, o Senhor Bispo ainda não vinha, murmurava ele para a multidão.

           

     Que se rezasse a São Gregário, patrono dos viandantes, alvitrava um. Ou ao São Caetano, padroeiro da freguesia... ou a outro santo qualquer, diziam outros. O importante é que o Santo trouxesse o Bispo! Mas nem santos nem preces pareciam capazes de satisfazer a sua impaciência.

           

 

 

     O tempo passava, lento e ressequido. Tampouco uma leve aragem que transportasse o aroma fresco e perfumado da montanha. E as crianças que estavam em jejum há tanto tempo... Mal o mal não era esse. Jesus Cristo jejuara quarenta dias e não morrera. O pior, coitadinhas, é que tardavam em crismar. E o sacrifício dos pais, as economias para o traje, o ramo de flores, a pequena festa em casa, as estampas para os parentes e amigos... Tudo se tornava insípido. Ah, o Bispo, o Senhor Bispo que havia maneira de aparecer!

           

     Atormentava-se o pobre sacerdote que, aflito, abatia-se pesaroso, num encolher de ombros, desejando, fazendo promessas, desfiando o rosário, para que o Bispo aparecesse lá ao fundo, no longínquo começo da estrada.

           

     As filas descerravam-se. Alguns encaminham-se para o altar. Ouviam-se pedidos e rezas. Promessas de cera, esmolas, rosários e missas... Mas do Bispo, do atrasado do Bispo, nem sombra.

           

     O povo desesperava. Queria o Bispo! Aprontavam-se soluções, debatiam-se pormenores, mas apenas se apurava uma conclusão: saber o que era feito do Bispo. O problema era do padre, ele que se arranjasse, forçavam uns. Prontamente combatidos, pois os filhos não eram do padre e este não tinha obrigações, os fiéis é que devem. Depois, já bastava a aflição de que o bom homem padecia e, além disso, era já velhote. Coitado...

           

     O melhor era telefonar, acordaram finalmente, mas só o António da Ponta tinha telefone e ficava do outro lado da aldeia. Falou-se com o Ponta. Que fosse um miúdo a correr lá a casa e dissesse à sogra que ia da parte dele. Ela, apesar de já não sair de casa ainda estava muito atinada e podia saber o que se passava.

           

     O rapazito, empossado na sua importante missão, partiu à desfilada, levando os olhares e esperanças da multidão. Todos sentiram, porém, um baque surdo nos corações quando, de repente, ele estacou e voltou-se gesticulando. O Bispo vinha lá ao longe. Ele via a poeira levantada pelo carro. Era vermelho, assegurava. O Bispo, o Senhor Bispo, vinha aí!

           

     Todos readquiriram nova seiva e queriam ver a esperança que se avizinhava. O infeliz prior teve de gritar, até enrouquecer, que alinhassem - Não, não podiam desmanchar as filas, que era pagão -, para que voltassem aos seus lugares. A ordem restabeleceu-se aos poucos, mas as cabeças ondeavam, esforçando-se por divisar o carro, que ia crescendo, crescendo, dilatando os olhos dos fiéis.

           

     Finalmente, pode-se ver. Todo vermelho, coberto de pó, chiando os travões, derrapando na terra solta da estrada. O Bispo parecia ter pressa de chegar!

           

     Trovejaram palmas, ressoando com o suor acumulado. O velho prior pareceu esquecer o peso dos seus sessenta anos e enfiou pelo portão do adro, para conduzir dignamente Sua Eminência.

           

     Mas, ah!... As aflições ainda não tinham acabado. A má sorte perseguia aquele povo. Nada de Bispo!... Apenas um homenzinho amarelado, velho e gordo como o prior, com um boné na mão e o carro vazio. Ainda se limpou o pó dos vidros, na ânsia do engano, mas nada mais se via nos assentos que o seu recheio saindo pelas brechas do cabedal.

           

     Falavam todos ao mesmo tempo, esmagando o condutor que se retraia, assustado, estendendo-se sobre o carro. Que escutassem, gritava o prior. Assim não se ouvia nada. Silêncio!

           

     Por fim, o pobre homem pode balbuciar o que o trazia ali. Fora encarregado pelo padre da freguesia ao lado para os avisar o Senhor Bispo..., o santo de Deus..., não podia vir. Nessa triste manhã, quando o foram acordar..., sua Eminência, a santidade em pessoa..., não dera acordo de si. Morrera com um sorriso beatífico nos lábios... Ele viera ali dizer isso e pedir a todos que rezassem pela sua alma.

           

     Um sentimento de luto e dor abateu-se sobre os infelizes camponeses. Vagarosamente e em silêncio, dirigiram-se para a igreja, limpando o pó que o suor lhes pregara ao rosto e murmurando comovidas preces por alma de sua Eminência

    

     Morrera o Senhor Bispo. Que Deus tivesse a sua alma no descanso eterno. O pior... eram os filhos, os anjinhos, as pobres criancinhas que ficavam por crismar!

 

Lisboa, 1973

 

1970-1972

 

Retalhos

 

 

Alocução, a 22-02-1972, à Rádio Clube de Angra do Heroísmo,

na sede da Artista Faialense

 

   

   

   

   

   

   

   

 
 
 

 

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