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Poesia - 1970 / 2001

 

 

2001

 
  Ventos de mudança  
     
 

Espero

sempre impaciente

ausente

na espera

que me desespera

 

Espero

quase indiferente

dormente

preparado

para um final inesperado

 

Espero

que o tempo ande depressa

abra a porta por onde passa

a desgraça ou a esperança

me traga, seja qual for

esses ventos de mudança

  

Vilamoura, 25-08-2001

 
     
  Amor recorrente  
     
 

Amor romântico

Embalado docemente

Estrela cadente

Renascida em cântico

 

Amor outra vez

Sem regras, libertino

Repentino, audaz

Que ainda não satisfaz

 

Amor falado

Palavras sem pecado

Desejos ardentes

Orgasmo gritado

Sémen semeado

Corpos dormentes

 

Amor cansado

De tanto prazer

De tanta paixão

Amor,

Pedindo repetição!

 

Vilamoura, 21-08-2001

 
     
  Amor  
     
 

Amor, paixão, fogo ardente

tudo se confunde

sendo diferente

no dizer de quem entende

pretende ser razão

 

Não sendo racional

o que aflige a gente

contente e descontente

com o que sente

descartam as palavras

pedradas encharcadas

no deserto vazio

de quem não sente nada.

 

Vilamoura, 24-02-2001

 
     
  Pinheiro  
     
 

Tenho um pinheiro à janela

verde verde como o azul do mar

espraio-me através dele

como se aquele verde verde

me fizesse navegar navegar

numa onda verde verde azul azul

surfando sobre rochas de pinhas agudas

prontas, à espera de dilacerar

 

E à noite, com o mar já tingido

de tantas outras cores de solidão

o pinheiro perfuma a varanda

 

Tranquilo e exausto de tanto viajar

aconchego-me na almofada do cadeirão

prometendo nunca mais a terra voltar

   

Vilamoura, 24-02-2001

 
     
  Pinha  
     
 

Uma pinha caiu-me

na cabeça

De um pinheiro redondo

que espreita

a minha janela

Não me magoou

Mas fez-me pensar

que os pinheiros

como alguns amigos

não são de confiança

  

Vilamoura, 24-02-2001

 
     
  Moscas  
     
 

As moscas dançam

no meio da sala

Porque bailam assim

à roda

subindo

descendo

sempre rodando

Que as move

que sentimentos

que asas de dança

Pousam na parede

próximas

em se tocar

Voltam a dançar

Pousam

dançam

pousam

dançam

mas nuca se tocam

Que bicho mais estúpido

E eu neste desatino

a perder o meu tempo

a ver duas moscas a dançar

 

Vilamoura, 24-02-2001

 

 

     
A Bola
     
 

É redonda

por isso rola

rebola

 

Do pé parte

é o remate

E voa

bate e parte

de novo

dos pés da cabeça

é a arte

do drible

do passe

 

Se o guardardes segura

é a defesa

Mas quando bem chutada

entra na baliza

e só pára nas redes

é o golo

e o torcicolo

dos adeptos

indefectos

admiradores da bola 

 

Vilamoura, 24-02-2001

 
     
  Farol CODAN II  
     
 

(Sexta-feira, vinte e duas horas.

Ligar o “pc” é como abrir uma janela

para a noite de luar que, teimosamente,

permanece com o mesmo brilho

 em Beja e Lisboa.)

 

O farol ilumina os céus dos mares.

Rasga as trevas e corações empedernidos,

pelo vento e pelo sal que o sol solidifica,

abrindo sorrisos em feridas cicatrizadas.

Navegantes da “Net”, imaginando marés,

sonhando cursos de água sem destino,

espraiando-se em desejos recalcados.

Viajantes dos sentidos, de emoções virtuais,

que arrepiam a pele, como se a realidade

estivesse na ponta dos dedos hesitantes.

Cibernautas das palavras, de nascentes

que renascem, que tomam novos rumos,

vogando na espuma das ondas irrequietas,

tingidas pela esperança do fim da tarde.

 

  Nana / Brutos

Beja / Lisboa, 2001

 
 

 

2000

 
  Palavras  
     
 

Palavras

brancas

repetidas

indiferentes

sem sentido

 

Que insinuam

que amam

que ferem

que doem

que odeiam

que sentem

 

Palavras

agudas

graves

quentes

mornas

temperadas

sem sabor

que se despedem

de quase nada

que nunca existiu

  

Lisboa, 28-03-2000

 
     
  Farol CODAN I  
     
 

Dedilhando o teclado

nas horas mais sombrias

procurando no CODAN

sabe-se lá o quê

 

Do outro lado, os dedos hesitantes

a voz imaginária que desfaz segredos

o rosto que se revela dos medos

a empatia que percorre a Net

a biliões de kapas por segundo

 

E assim navegando neste mundo

criado e recriado nas teclas que falam

num tom de voz sempre modulado

pouco firme e quase descompassado

se chega ao fim do fio do telefone

 

Os bites são trocados por sentimentos

os bipes por emoções á flor da pele

os códigos traduzem pensamentos

os beijos e carinhos o encontro desejado

de quem sabe que o tc virtual do CODAN

seria realidade, quente, sentida, palpável

 

Dedilhando o teclado

tocando o corpo quase real

pensando que amanhã

vou estar de novo contigo

 

Lisboa, 21-03-2000

 
     
  Nascer em Moçambique  
     
 

Todos nascemos

bem ou mal

de parto mais ou menos normal

 

Cada um chorou

quando saiu

do ventre da mãe que o pariu

 

Se ter um filho

é ser-se amado

mesmo quando não desejado

 

que dizer de quem nasce

no alto de uma árvore

em Moçambique amaldiçoado?

 

Vilamoura, 03-03-2000

 
     
  As árvores em Moçambique  
     
 

Moçambique sofre

no alto das árvores

 

Sobre as águas que lutam

contra as ideias insanas

dos homens teimosos.

Mulheres, crianças e velhos

resistem à vingança cega

das cheias devastadoras

que nem a sede matam

 

No paradoxo das coisas

nascem crianças, morre gente.

O abraço da solidariedade

permanece curto, arrastado

esmola dos políticos

a que os médias

obrigam e santificam

 

E enquanto vai ou não vai

a ajuda, o simples gesto

há gente que cai das árvores

quebra o silêncio da revolta

numa viagem sem história.

E mesmo que algum dia

recolham, milimetricamente

toda a lama das cheias

nenhuma estória será contada

 

Apenas os que ficaram nas árvores

sobre as cheias de Moçambique

saberão dizer com amargura

como viram o céu e a água.

Apenas eles saberão dar valor

aos abrigos improvisados

refúgio patético do mundo

e da ajuda internacional

  

Vilamoura, 03-03-2000

 
 

 

1998

 
  Boquinha  
     
 

Fim da tarde

fim do trabalho

de quem trabalha

para viver

A sensação sublime

do descanso

O petisco que ajuda

a saborear a cerveja

Um presuntinho

pata negra

uma cervejinha

Umas moelinhas

deliciosas

uma cervejinha

Uma dobradinha

com molhinho

uma cervejinha

Uma sapateira

pãozinho torrado

uma cervejinha

Outra cervejinha

para acabar o lanche

E agora

aonde vamos jantar? 

 

Macau, 21-11-1998

 
     
  Arma desarmada  
     
 

A arma que se engatilha

na nossa cara

é uma arma desarmada

 

Porque sendo uma arma

friamente apontada

perde a noção do tempo

perde a emoção da vida

 

Apagando a simplicidade

dos momentos importantes

a arma assim apontada

é a negação da existência

e da própria humanidade

 

A arma engatilhada

na nossa cara

é uma arma estúpida

em que a bala é objecto

de vontade alheia

que mata

porque simplesmente

tem a função de matar

 

Macau, 16-04-1998.

 
     
  Anormal  
     
 

Anormal me chamam

só porque sou diferente

só porque não sou igual

 

Como se igual fosse

ser a cópia vulgar

do que os outros são

 

Ou diferente fosse

a fuga irremediável

do patético padrão

que alguns teimam

em incluir os outros

 

Diferente ou igual

 

Macau, 04-04-1998

 
 

 

1997

 
  Espelho  
     
 

Vendo assim como estou

assim como me sinto

tentando encontrar o mundo

 

tentando perceber o que sou

Vendo como se me visse no espelho

tentando entender aquela imagem

que me parece perto e distante

eu, outro e mais alguém

Vendo que me pareço o que não assumo

que sinto o que não me interessa sentir

que acho o que não quero encontrar

que entendo o que não quero entender

Parto o espelho que me desengana

que me impede de ser o que quero ser

que me obsta à ilusão que me rodeia

que parte a parte de mim que ainda vive

 Partido o espelho

ganho o azar

fico pior

fico melhor

fico dividido

fico mais velho

mas mais assumido

 

 Macau, 1997

 
 

 

1995

 
     
  O jeito da gente  
     
 

O jeito da gente

é sempre diferente

após uns copos

num lugar qualquer

 

A gente desajeita-se

aguça uns poucos sentidos

perde a noção dos rostos

pronuncia evidências

até então segredos absolutos

dissolve-se na mística

dos momentos únicos

 

Então

Apalpa-se a estratégia

de há muito concebida

e os bocados colam-se

como por magia

 

Concretizado o objectivo

fica-se quase sempre na mesma

assim visto a frio

sem remorsos nem recriminações

apenas promessas hesitantes

de evitar recaídas

 

Mas

a intenção morre

sempre que a gente

desajeitada de novo

volta a ser diferente

  

Macau, 14-01-1995

 
 

 

1994

 
  Chapéus  
     
 

Eu tive um chapéu

em terna idade

de palha

de papel

que importa

já nem me lembro

 

Eu tive um chapéu

já homenzinho

de feltro

de pele pura

que importa

já nem me lembro

 

Eu tive um chapéu

já bastante adulto

de coco

de marca afamada

que importa

 

já que me lembro

de nunca os ter usado

  

Macau, 30-11-1994

 
     
  Nas tintas  
     
 

Estou-me nas tintas

para as lamechices

para pingar amor fácil

para amar o próximo só porque ele me pode amar

para achar que é giro o que os outros acham

para gostar dos que devem ser admirados

para conviver com os que fazem disso profissão

para adorar ídolos de ocasião

para masturbar-me pela miss Macau

ou por outra miss qualquer

     (embora não negue que, ao natural,

      não seja assunto encerrado!)

para vestir smoking

para mover influências

para fazer carreira política

     (nem sequer fiz a militar)

para ficar à espera seja de quem for

para lamber botas

     (porque tenho a língua demasiado áspera)

para ficar de cócoras

     (porque me causa espasmos nas canetas)

para ser suave com o poder

     (porque nem ao tabaco o admito)

para ser parvo por condição

para ser verbo de encher por opção

 

Estou-me nas tintas

para tudo o que possam querer

 

Macau, 30-11-1994

 
     
  Adoremos...  
     
 

Adoremos

O Senhor que nos pariu e criou

adoremos tudo o que nos deu

e o cuidado que teve por nós

que nos fez assim

tal com nós somos

 

Adoremos O Senhor

por nos ter feito

à sua imagem e semelhança

 

Obrigado Senhor

porque tal como nos fizeste

somos o espelho do que queres

que nós possamos ser

 

Ser assim como Tu

no imaginário

na incerteza

na dor

na grandeza

na redenção

 

Do mal

do amor também

disto-tudo que é a vida

que nos deste

que nos exiges

de que nos pedes contas

 

Mas que contas tenho eu para dar

se contas eu próprio não faço

de uma vida que eu não sei se vivo

se vivo eu não sei se estou

e estando penso que não vale a pena

contabilizar no teu rol celestial

 

Porque não fazemos assim

eu esqueço que Tu existes

Tu esqueces a contabilidade

e ambos viveremos felizes para sempre

 

Quando

eventualmente

Te lembrares de mim

só Te peço o benefício da dúvida

até porque

lembra-Te

fizeste-me à tua imagem e semelhança

 

Macau, 26-11-1994

 
 

 

1983

 
 

Amiga I e II

 
     

Amiga

de mil vezes a palavra repetida

se fez flor

 

E desse grito que não‑só‑sexo

eu faço eco reprecutido

nas mil cordas de violino

que me tangem a imaginação

 

É que nas dobras do tempo

quando ocaso e nascer se confundem

e a vida é um pouco disto‑não‑sei‑quê

que nos dá o saber e a ignorância

de sermos imortais

pela fraqueza‑força dos homens

e pitéus na boca das lagartixas

preferimos falar de cão‑para‑baixo

com os que nos acham sublimes

 

E é isso que nos resta da contra‑luz

com que batizámos e teimamos em manter

este universo‑sem‑eixo

que deambulando persegue a sombra

projectada em nenhum espaço

numa ânsia voraz de deglutir

a si mesmo

 

Nesta era em que a técnica comanda

o ordenador ordena toda a desordem social

e faz poemas estandardizados

de bits incomensuráveis

o homem realiza‑se na máquina programada

 

Mas, se posso dizê‑lo, sem blasfémia

contra novos deuses que teimam em ficar

eu me autoprogramo em linguagem binária

para te dizer simplesmente

(e já descodificado)

nesta axiologia de romântico inveterado

 

Amiga

de mil vezes a palavra repetida

se fez flor

 

Lisboa, 09-12-1983

 

Amiga

deixa que as palavras emudeçam

e os olhos falem

 

Deixa-me sentir de novo o teu corpo

o calor envolvente do teus braços

os teu lábios quase tão distantes

 

Deixa que as minhas mãos te percorram

te contagiem desta locura ainda morna

deixa-me sentir a tua pele escaldante

sob a carícia terna dos meus dedos

 

Amiga

esquece por um breve momento

a contradição que te turva o olhar

quero sentir-te confundida comigo

numa diluição absoluta de seres

e de corpos sem quaisquer barreiras

 

Esquece tudo o que não seja tu eu nós

 

Amiga

e se os anos cobrirem de bolor

as lembranças que hoje são gumes

jamais se fecharão estas feridas

este sonho lindo que nos une

 

Amiga

deixa que as palavras emudeçam

e os olhos falem

 

Lisboa, 09-12-1983

 

 

 

 

1976

  Caracol  
     
 

O caracol vive dentro de si

o seu habitáculo é tudo o que tem

que tem para si mas não para dar

 

O caracol é bicho introvertido

de tanto pensar fez-se masoquista

mas pensa que a tara é artística

 

O caracol crê na amizade

e é até capaz de se apaixonar

mas fica-se na casca a magicar

 

O caracol vem da distância

sustenta-se de versos de pé-quebrado

e faz-se estátua para ser adorado

 

Pobre caracol metido a mendigo

fabricando sonhos, comendo migalhas

 

Ai, caracol, só és teu amigo!

 

Lisboa, 1976

 
     
  Desenganos  
     
 

(Prima facie)

Coisas como amor e amizade

crises de para-psico-ideologia

ficaram de vez arrumadas

Se as garotices pseudo-infantis

(já sem espaço e tempo útil)

não voltarem pela via romântica

sentir-me-ei curado deste mal

que de tão simples é milenário

 

(Sapient sat)

Se o homem e a mulher se amam

(e o amor e a tosse não se escondem)

a enciclopédia política desconhece

que quem ama bem se castiga

Mas se o poeta nem sempre nasce

e faz-se da antítese do mais além

é porque sobre este peito vulnerável

arde uma chama ainda à espera

 

(Ultima ratio)

É preciso ver para além do olhar

sentir para além da distância formal

ouvir e entender para além dos lábios

amar nas estátuas firmes de ausência

a sua própria quietude enigmática

que nos faz transpor para além das coisas

  

Lisboa, 1976

 
     
  O Bêbado  
     
 

E vai o bêbado cantando:

- Olinda, ó i, ó ai!

 

E vai pensando na sua Olinda

a mãe das suas criancinhas

que por azar

teve lá em riba no Porto

 

E vai o bêbado cantando:

- Olinda, ó i, ó ai!

 

E vai cambaleando pelo Intendente

encharcado de aguardente e meiguices

que lhe fizeram as meninas confidentes

 

E vai o bêbado cantando:

- Olinda, ó i, ó ai!

 

Olinda, Olinda, ai esta vida

que maltrata, que desgasta o nosso amor

ai mulher, ai mãe mártir ainda...

 

E vai o bêbado cantando:

- Olinda, ó i, ó ai!

 

Porque quem canta adia a realidade

até ao limite em que o limite é vencido

e numa forca caseira de espasmo em espasmo

da mórbida resistência à derradeira vontade

de reparar um engano - ter nascido!

 

  Lisboa, 1976

 
     
  Broadway  
     
 

Broadway, Broadway

universo de luz e estrelas

e eu adoro vê-las

de lantejoulas

adivinhando as formas

e o meu desejo cresce

numa ilusão doirada

 

Broadway, Broadway

o que fizeste do meu sonho real

a minha barraca na Musgueira

parece um palácio encantado

com fadas e abóboras no telhado

 

Broadway, Broadway

porque fizeste de mim uma rainha

eu que tresnoitava no Cais do Sodré

tenho lá fora o Cadillac e o meu príncipe

que me estende um tapete vermelho

 

Broadway, Broadway

que me entras em casa pela têvê

porquê essa vingança de me acordar

de me fazeres voltar a ser prostituta

porque me pões ali uma criança a chorar

e à porta um chulo que me desgasta

 

Broadway, Broadway

Sinto-me tão fraca e o meu sonho voa

tão depressa que vou ficando

cada vez mais desumana

 

Oh, Broadway, Broadway

 

Lisboa, 1976

 
     
 

Olhos

(à guisa de poesia popular)

 
     
 

Os teus olhos são dois luzeiros

que conquistaram as trevas

já a lua e a estrela d'alva

se cansam de me ver olhar-te

cuidam elas que me zango

se as vir apagarem-se

 

Para que quero elo lampejos

se tenho estrelas cadentes

se mesmo de noite vejo

para além do Universo

 

Que vão embora do céu

condenem-me à escuridão

basta-me a luz dos teus olhos

o calor da tua mão

 

Lisboa, 1976

 
     
  Obsessão  
     
 

O poema é uma arma de dois gumes

diverte o público e mata o poeta

 

O poema é o escape do poeta desesperado

é a tentativa vã de passar o sofrimento

para a compreensão ou riso dos outros

 

O poema é o acto de contrição do poeta

confessa o pecado e auto penitencia-se

guilhotinando-se com as palavras

 

O poema finalmente é a desculpa

do fracasso

da cobardia

da castração mental

da tara indispensável a um obcecado

  

Lisboa, 1976

 
 

 

1975

 
Absurdo
     
 

O quebrar do absurdo

pode provocar o pânico

 

Também uma ilusão de barro

um cravo

num cano de espingarda

uma boca sangrando

 

As primaveras seguem-se

à velocidade do som

e da música das espingardas

 

Dir-se-ia que não são as rotações

mas o gatilho

que faz mudar as estações

 

Lisboa, 1975

 
     
  Ámen  
     
 

Ámen, Ámen

Vivam os santos do altar

e o senhor abade

que nos acabou de crismar

 

Ámen, Ámen

requiem pelas nossa crenças

que daqui pela vida fora

temos Deus sobre as cabeças

 

Ámen, Ámen

façam todos penitência

para que os nossos governantes

governem com inteligência

 

Ámen, Ámen

que o padre Inácio desertou

passou-se para os comunistas

foi o Diabo que o tentou

 

Ámen, Ámen

dobrem os sinos a finados

que o santo padre morreu

a lutar pelos explorados

 

Ámen, Ámen

que o aborto é traição

param os vossos filhos

Deus lhes dará o pão

 

Ámen, Ámen

que o mundo vai acabar

sobre as cidades da Terra

já há guerra nuclear

 

Ámen,  Ámen

a vontade de Deus se faça

quando a morte nos libertar

nos leve na Sua graça

 

Ámen, Ámen

requiem pelas nossas crenças

que depois da nossa morte

temos terra sobre as cabeças

 

Lisboa. 1975

 
     
  Deslumbramento  
     
 

O deslumbramento das espécies caquéticas

emprenha-se ao infinito

e no aborto do orgasmo suicida

nasce da raiva a altivez

 

Pejadas de peles as ruas da Cidade

na projecção sublimada dos conceitos

e vão erectas, espartilhadas

no torcicolo próprio das colunáveis

 

Bebem o chá nas casas de caridade

(que a protecção de Deus é sempre agradável)

e vão de novo em pescoços de javali

meter o nariz aqui e acolá

onde há uma alma que careça de carinho

e fazem-lhe o ninho com desfaçatez

 

Mas os porquês ficam de fora

(Essa agora!...)

porque Deus é Deus e mulher é mulher

e meter a colher entre os dois não é sensato

nem vernáculo em termos sociais

 

E afinal os marginais são para isso mesmo

para dar consolo e conforto e calor humano

nem que seja um estupor porque Deus é Grande

e a mulher do casaco de peles tem coração

 

Porque senão temos de dizer que a caridade

é uma necessidade da mulher assexuada

que nunca foi virgem nem nada que se pareça

e de abadessa só tem a pele esbranquiçada

 

Porque o sexo é no casaco e nos olhos

e deslumbrada de tanta ternura vem-se

sem mais nada que não seja candura

 

Lisboa, 1975

 
     

 

1974

 
  Amarelo  
     
 

O amarelo da Carris

leva de maralha

uma mão cheia

 

Gatunos

vadios

proxenetas

 

Mas não se queixa

só geme às vezes

nas curvas

 

E lá vai

de haste levantada

orgulhoso

como se transportasse um rei

 

Aquele amarelo é um filósofo!

 

Lisboa, 1974

 
 

 

1973

 

  Perfume  
     
 

Fiquei com o teu perfume nas narinas

 

A tua presença envolve-me ainda

e tolhe-me os movimento

como se o contacto da tua mão

me desse nova vida

 

Recordo o teu olhar embaraçado

agitando a cabeça indecisa

cheia de contradições

procurando fugir do olhar triste

que ponho todas as manhãs

 

Depois fugiste

de mim

dos teus pensamentos

 

Saíste e perdeste-te na multidão

enquanto eu

enlatado lá no autocarro

te amava na imagem e no perfume

que deixaste no ar

 

Lisboa, 1973

 
     
  Se eu fosse poeta  
     
 

Se eu fosse poeta

tomar-te-ia por musa e senhora

cantaria os teus olhos e a luz

que penetra as trevas do meu talento

 

Ah, se eu fosse poeta

em delírio te sonharia

de vestes transparentes

voando com a brisa do meu hálito

num firmamento sem cor sem fim

eternamente

 

Oh, musa minha

(se eu fosse poeta)

levar-te-ia à praia deserta

(como sempre sonhei)

ver-te-ia dançar sobre a areia

num poema multicolor

resplandecente

confundindo o próprio sol

e beijar-te-ia com fogo e amor

infinitamente

 

Lisboa, 1973

 
     
  Partiu  
     
 

Partiu

vazio de apitos

sem aparato

duma estação nua

entardecida

cheirando a carvão

 

Um chefe sombrio

sem chapéu

deu a partida

 

A dor gemeu

no ferro e na alma

partiu sem despedida

nem um adeus

 

Um amanhã sombrio

soluçando

enrouquecido

amanhã sem sol

escuro e triste

horizonte longínquo

incerto

fim da linha

 

Lisboa, 1973

 
 

 

1971

   

 

 
 
 

 

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