Ludovico

Ludovico enviou-nos os seus escritos com alguns e longos interregnos, devido aos seus afazeres e, sobretudo, a frequentes saídas do País, correspondendo, nalguns casos, a grandes ausências. "Até sentir a cabeça arejada e capacidade mental para voltar a um lugar onde uma oligarquia medíocre e ridícula enriquecia ilícita e impunemente enquadrada por um sistema institucional a que chama democracia", como ele dizia. Alguns desses escritos foram publicados em jornais e no "Farol das Artes" e em Jornais.  Agora, em parte incerta, parece de volta às suas "bicadas" e crónicas...

2017

Nota política 2

Como é possível que, em 2 ou 3 dias, o PS (ou melhor dizendo, António Costa) tenha perdido grande parte do “capital” que tinha vindo a acumular? Como é possível que o sistema de proteção civil tenha ficado quase desmantelado desde 1 de outubro? Mas, pior, como é possível que, num único dia, tenha havido mais de 500 ignições? Quem, porquê? E onde andavam os responsáveis policiais e políticos?

Apenas algumas perguntas, que ficarão sem resposta e tudo há de voltar ao mesmo. O que não sei se volta é a vantagem que o PS tinha, o momento único que se abria a António Costa - sobretudo depois daquele discurso de quase zombie, aparentando-se com Constança – a coisa pega-se!

O cansaço não explica tudo nem a moção de censura do CDS leva a lado nenhum. O PR, mais convicto e convincente, triturou e empaleou. Como vai ser agora?!

 

Ludovico, 17/10/2017

Nota política 1

As Eleições Autárquicas em Portugal, conjugadas com os êxitos da Gerigonça, geraram condições para o PS tentar, a curto prazo, uma maioria absoluta. Estando em curso a discussão do Orçamento para 2018, com o PCP, PEV e BE, de duas uma: ou há uma convergência sem grandes concessões ou o PS entende não ter mais condições para governar. Mas mesmo que isso não aconteça – e independentemente do Orçamento -, pode o PS retirar consequências políticas do Relatório de Pedrógão Grande e concluir que deve demitir-se. António Costa tem nas mãos uma ocasião única. O Presidente da República não teria outra alternativa senão convocar novas eleições face à inutilidade de um Governo PSD (ainda a tentar arrancar com um novo líder) e o CDS. As próximas semanas vão ser mesmo interessantes, acho. Com os Astros alinhados a favor, veremos o que decide a cúpula do PS.

 

Ludovico, 12/10/2017

2011

David e Golias

Como já estou farto de falar de coisas tristes, que é como quem diz, da economia e da situação a que chegámos, não por culpa minha, repito, apetece-me, apesar de não ter inclinação religiosa, transcrever a passagem Bíblica sobre a história de David e Golias, ocorrida por volta de 1040 A.C.. Que tem a ver com a actualidade? Se calhar nada. Ou, vista com os olhos de agora, talvez possa conter uma mensagem útil? 

 "Samuel 17

 1 Ora, os filisteus ajuntaram as suas forças para a guerra e congregaram-se em Socó, que pertence a Judá, e acamparam entre Socó e Azeca, em Efes-Damim.

 2 Saul, porém, e os homens de Israel se ajuntaram e acamparam no vale de Elá, e ordenaram a batalha contra os filisteus.

 3 Os filisteus estavam num monte de um lado, e os israelitas estavam num monte do outro lado; e entre eles o vale.

 4 Então saiu do arraial dos filisteus um campeão, cujo nome era Golias, de Gate, que tinha de altura seis côvados e um palmo.

 5 Trazia na cabeça um capacete de bronze, e vestia uma couraça escameada, cujo peso era de cinco mil siclos de bronze.

 6 Também trazia grevas de bronze nas pernas, e um dardo de bronze entre os ombros.

 7 A haste da sua lança era como o órgão de um tear, e a ponta da sua lança pesava seiscentos siclos de ferro; adiante dele ia o seu escudeiro.

 8 Ele, pois, de pé, clamava às fileiras de Israel e dizia-lhes: Por que saístes a ordenar a batalha? Não sou eu filisteu, e vós servos de Saul? Escolhei dentre vós um homem que desça a mim.

 9 Se ele puder pelejar comigo e matar-me, seremos vossos servos; porem, se eu prevalecer contra ele e o matar, então sereis nossos servos, e nos servireis.

10 Disse mais o filisteu: Desafio hoje as fileiras de Israel; dai-me um homem, para que nós dois pelejemos.

11 Ouvindo, então, Saul e todo o Israel estas palavras do filisteu, desalentaram-se, e temeram muito.

12 Ora, Davi era filho de um homem efrateu, de Belém de Judá, cujo nome era Jessé, que tinha oito filhos; e nos dias de Saul este homem era já velho e avançado em idade entre os homens.

13 Os três filhos mais velhos de Jessé tinham seguido a Saul à guerra; eram os nomes de seus três filhos que foram à guerra: Eliabe, o primogênito, o segundo Abinadabe, e o terceiro Samá:

15 mas Davi ia e voltava de Saul, para apascentar as ovelhas de seu pai em Belem.

16 Chegava-se, pois, o filisteu pela manhã e à tarde; e apresentou-se por quarenta dias.

17 Disse então Jessé a Davi, seu filho: Toma agora para teus irmãos uma refa deste grão tostado e estes dez pães, e corre a levá-los ao arraial, a teus irmãos.

18 Leva, também, estes dez queijos ao seu comandante de mil; e verás como passam teus irmãos, e trarás notícias deles.

19 Ora, estavam Saul, e eles, e todos os homens de Israel no vale de Elá, pelejando contra os filisteus.

20 Davi então se levantou de madrugada e, deixando as ovelhas com um guarda, carregou-se e partiu, como Jessé lhe ordenara; e chegou ao arraial quando o exército estava saindo em ordem de batalha e dava gritos de guerra.

21 Os israelitas e os filisteus se punham em ordem de batalha, fileira contra fileira.

22 E Davi, deixando na mão do guarda da bagagem a carga que trouxera, correu às fileiras; e, chegando, perguntou a seus irmãos se estavam bem.

23 Enquanto ainda falava com eles, eis que veio subindo do exército dos filisteus o campeão, cujo nome era Golias, o filisteu de Gate, e falou conforme aquelas palavras; e Davi as ouviu.

24 E todos os homens de Israel, vendo aquele homem, fugiam, de diante dele, tomados de pavor.

25 Diziam os homens de Israel: Vistes aquele homem que subiu? pois subiu para desafiar a Israel. Ao homem, pos, que o matar, o rei cumulará de grandes riquezas, e lhe dará a sua filha, e fará livre a casa de seu pai em Israel.

26 Então falou Davi aos homens que se achavam perto dele, dizendo: Que se fará ao homem que matar a esse filisteu, e tirar a afronta de sobre Israel? pois quem é esse incircunciso filisteu, para afrontar os exércitos do Deus vivo?

27 E o povo lhe repetiu aquela palavra, dizendo: Assim se fará ao homem que o matar.

28 Eliabe, seu irmão mais velho, ouviu-o quando falava àqueles homens; pelo que se acendeu a sua ira contra Davi, e disse: Por que desceste aqui, e a quem deixaste aquelas poucas ovelhas no deserto? Eu conheço a tua presunção, e a maldade do teu coração; pois desceste para ver a peleja.

29 Respondeu Davi: Que fiz eu agora? porventura não há razão para isso?

30 E virou-se dele para outro, e repetiu as suas perguntas; e o povo lhe respondeu como da primeira vez.

31 Então, ouvidas as palavras que Davi falara, foram elas referidas a Saul, que mandou chamá-lo.

32 E Davi disse a Saul: Não desfaleça o coração de ninguém por causa dele; teu servo irá, e pelejará contra este filisteu.

33 Saul, porém, disse a Davi: Não poderás ir contra esse filisteu para pelejar com ele, pois tu ainda és moço, e ele homem de guerra desde a sua mocidade.

34 Então disse Davi a Saul: Teu servo apascentava as ovelhas de seu pai, e sempre que vinha um leão, ou um urso, e tomava um cordeiro do rebanho,

35 eu saía após ele, e o matava, e lho arrancava da boca; levantando-se ele contra mim, segurava-o pela queixada, e o feria e matava.

36 O teu servo matava tanto ao leão como ao urso; e este incircunciso filisteu será como um deles, porquanto afrontou os exércitos do Deus vivo.

37 Disse mais Davi: O Senhor, que me livrou das garras do leão, e das garras do urso, me livrará da mão deste filisteu. Então disse Saul a Davi: Vai, e o Senhor seja contigo.

38 E vestiu a Davi da sua própria armadura, pôs-lhe sobre a cabeça um capacete de bronze, e o vestiu de uma couraça.

39 Davi cingiu a espada sobre a armadura e procurou em vão andar, pois não estava acostumado àquilo. Então disse Davi a Saul: Não posso andar com isto, pois não estou acostumado. E Davi tirou aquilo de sobre si.

40 Então tomou na mão o seu cajado, escolheu do ribeiro cinco seixos lisos e pô-los no alforje de pastor que trazia, a saber, no surrão, e, tomando na mão a sua funda, foi-se chegando ao filisteu.

41 O filisteu também vinha se aproximando de Davi, tendo a: sua frente o seu escudeiro.

42 Quando o filisteu olhou e viu a Davi, desprezou-o, porquanto era mancebo, ruivo, e de gentil aspecto.

43 Disse o filisteu a Davi: Sou eu algum cão, para tu vires a mim com paus? E o filisteu, pelos seus deuses, amaldiçoou a Davi.

44 Disse mais o filisteu a Davi: Vem a mim, e eu darei a tua carne às aves do céu e às bestas do campo.

45 Davi, porém, lhe respondeu: Tu vens a mim com espada, com lança e com escudo; mas eu venho a ti em nome do Senhor dos exércitos, o Deus dos exércitos de Israel, a quem tens afrontado.

46 Hoje mesmo o Senhor te entregará na minha mão; ferir-te-ei, e tirar-te-ei a cabeça; os cadáveres do arraial dos filisteus darei hoje mesmo às aves do céu e às feras da terra; para que toda a terra saiba que há Deus em Israel;

47 e para que toda esta assembléia saiba que o Senhor salva, não com espada, nem com lança; pois do Senhor é a batalha, e ele vos entregará em nossas mãos.

48 Quando o filisteu se levantou e veio chegando para se defrontar com Davi, este se apressou e correu ao combate, a encontrar-se com o filisteu.

49 E Davi, metendo a mão no alforje, tirou dali uma pedra e com a funda lha atirou, ferindo o filisteu na testa; a pedra se lhe cravou na testa, e ele caiu com o rosto em terra.

50 Assim Davi prevaleceu contra o filisteu com uma funda e com uma pedra; feriu-o e o matou; e não havia espada na mão de Davi.

51 Correu, pois, Davi, pôs-se em pé sobre o filisteu e, tomando a espada dele e tirando-a da bainha, o matou, decepando-lhe com ela a cabeça. Vendo então os filisteus que o seu campeão estava morto, fugiram.

52 Então os homens de Israel e de Judá se levantaram gritando, e perseguiram os filisteus até a entrada de Gai e até as portas de Ecrom; e caíram os feridos dos filisteus pelo caminho de Saraim até Gate e até Ecrom.

53 Depois voltaram os filhos de Israel de perseguirem os filisteus, e despojaram os seus arraiais.

54 Davi tomou a cabeça do filisteu e a trouxe a Jerusalém; porém pôs as armas dele na sua tenda.

55 Quando Saul viu Davi sair e encontrar-se com o filisteu, perguntou a Abner, o chefe do exército: De quem é filho esse jovem, Abner? Respondeu Abner: Vive a tua alma, ó rei, que não sei.

56 Disse então o rei: Pergunta, pois, de quem ele é filho.

57 Voltando, pois, Davi de ferir o filisteu, Abner o tomou consigo, e o trouxe à presença de Saul, trazendo Davi na mão a cabeça do filisteu.

58 E perguntou-lhe Saul: De quem és filho, jovem? Respondeu Davi: Filho de teu servo Jessé, belemita."

Lisboa, 16-09-2011

Obama, já chega.

 

     Depois de ter afirmado ao Mundo que os EUA não são Portugal e a Grécia, agora, após o acordo entre Democratas e Republicanos sobre o aumento do deficit do seu País, Obama, com o maior desplante, vem dizer que essa alteração ficou a dever-se nomeadamente aos problemas financeiros da Europa.

 

     Ó Senhor Obama, chega. Não foi ai que começou a crise, devido à vossa ganância? Não foi por causa dela que a Europa está como está, com uma excessiva exposição aos vossos negócios financeiros sem regras? Homem, deve estar a precisar de um urgente tratamento para a memória. E não se esqueça de levar o cartãozinho do seguro quando for ao Hospital.

 

     Mas devo-lhe dizer que ainda bem que, inteligentemente, considera que os EUA não são Portugal. Fico feliz com isso e bastante mais descansado. E pode ficar descansado também que não queremos mesmo trocar. É que gostamos de ser assim. Um Pais com passado, que deu mundos ao Mundo, que iniciou a globalização, que tem pergaminhos e amor-próprio. Um Pais que vale por si, não pelo que exige aos outros. Um Pais com História.

 

     Portanto, acabe lá com essa cena de menorizar Portugal e a Europa, que já estamos fartos de si. Sobretudo porque sonhámos consigo na sua campanha. Porque acreditamos que a sua Presidência iria mudar o Mundo para melhor. Fica-nos o amargo de que só era melhor porque o seu predecessor era do pior que os EUA tinham. Ou ainda vamos ter mais desgostos?

 

Lisboa, 02-08-2011

 

A Crise Maior

 

     Podemos ser pessimistas, expectantes ou optimistas militantes. A verdade é que hoje os últimos são cada vez mais escassos. Não há razões para ter esperança, quanto muito a fé em dias melhores. E isso não é característico do optimista, mas de quem professa uma religião.

 

     Não se vê fundamento em fazer sacrifícios, resolvendo uma crise financeira criada apenas por alguns, principalmente pelos responsáveis políticos que, com o amolecimento das ideologias deixaram de se preocupar com o futuro e encurtaram a visão do ganho dos Estados para as perdas do ciclo da governação. Não há políticos à altura dos desafios que o Mundo globalizado coloca às Nações. Perante a inépcia e a ausência de coragem, prolifera a desregulamentação e a prática desenfreada do liberalismo selvagem e autofágico.

 

     Medra a mediocridade, tingida de laivos de chef com receitas milagrosas, mas que deixam um amargo na boca. E, retirando um ou outro ingrediente, é sempre a mesma: redução de trabalhadores, redução do poder de compra, redução da vida. É como uma receita minimalista, cujo saldo é o desemprego e os salários vão para os impostos, que alimentam o “monstro” - já não o Estado mas o sector financeiro, onde se situa a causa de quase tudo. Pescadinha de rabo na boca. Sanguessuga voraz que, antes de morrer, desertifica tudo à sua volta. Por isso o liberalismo actual é autofágico.

 

     Com uma Europa que, dia a dia, vai destruindo o que levou décadas a construir, com os Estados Unidos da América à beira de uma catástrofe e o seu Presidente a afirmar que não são nem a Grécia nem Portugal – um Obama já formatado pelo sistema -, o futuro assemelha-se a um puzzle que ninguém parece capaz de remontar. Com as peças desordenadas, fica a sensação de que, se ganharem vida – que é como quem diz, se fartarem de estarem desarrumadas, mal tratadas e famintas -, podem bem ser capazes de dar um novo rumo ao Mundo. O que assusta mesmo, é o que pode acontecer no entretanto.

 

Lisboa, 18-07-2011

 

Crise, qual crise?

 

     Apetece-me fazer como alguns, que deixaram de ouvir notícias. Logo, não há crise. Mas deixando de lado a comunicação social, que nos matraqueia a cabeça, a toda a hora, aumentando a incerteza e a angústia, apetece-me perguntar: - Porque é que eu tenho de pagar a crise dos outros? Eu, um homem que só gastou o que podia, que viveu apenas do que tinha, que saldou as suas dívidas sem atrasos, porque tenho de pagar as favas pelos outros terem gasto mais do que deviam? Alguém responde?! ...Não. E não me venham com a responsabilidade de todos, que nada tenho a ver com isso. Estou farto de pagar pelos erros dos outros e, sobretudo, pelo comportamento dos políticos. Nem ninguém me consegue explicar que, ainda por cima, tenha de pagar as dívidas dos próprios Bancos.

 

     Já nem falo mais sobre a autofagia do neoliberalismo, das diatribes das agências de rating, que ninguém controla ou sequer pretende controlar. Da ineficácia dos políticos mesmo depois de as acusarem da crise. Da estupidez das notações dessas agências que enterram os países, ao ponto de ficarem insolventes e, consequentemente, não poderem pagar as dívidas. E se não pagam, os credores, orientados por essas eminências pardas, não recebem. Isto não é autofagia?

 

     Depois vem o FMI, a reboque da UE – que melhores dias já viu – aplicar medidas que endireitam as finanças públicas, mas empobrecem todos. Ou quase todos, pelo menos. E quem manda não faz nada. Talvez porque quem manda sejam mesmo os especuladores. Até quando? Não sendo profeta, não auguro, no entanto, nada de bom. É que muita gente está farta... e eu também!

 

Lisboa, 18-04-2011

 

Teimosia do poder

 

 Depois da Tunísia, o Egipto. E há quem diga, com propriedade que a instabilidade do Norte de África e Médio Oriente não fica por aqui. E, quem sabe, a confirmar-se este efeito dominó, não se alastrará mais para Leste... até à China. Parece uma questão de tempo, com mais ou menos sangue derramado.

 

      Tudo tem a ver com o facto de os regimes ditatoriais empobrecerem a esmagadora maioria dos cidadãos dos seus Países, desviando a riqueza para as oligarquias instaladas. Aos poucos, à consciência progressiva dessa verdade, sobrevém o grito: “Basta!”.

 

      E quando enchem as ruas, em revolta popular, persistente mesmo perante concessões do poder, o veredicto é sempre o mesmo. O regime cai de podre. E sem sucedâneos. O povo não cai em engodos, quer a democracia, a mais participativa possível. (O que não significa que oportunistas não assumidos então levem o País ao mesmo algum tempo depois.)

 

      Só os ditadores e as oligarquias não entendem. Ou se entendem, acham sempre que podem perpetuar o poder. Engano puro. A revolução, nos moldes em que está a desenrolar-se vai mesmo até ao fim. Está a ser assim na Tunísia, vai ser no Egipto e será noutros Países contaminados.

 

     Os responsáveis por outros Estados, em eminência de revolução, se fossem inteligentes começavam, de imediato, a transformar os respectivos regimes, abrindo, consagrando direitos, permitindo a participação de todos, viabilizando um processo que conduza à democracia. A não ser assim, têm os dias contados.

 

     Mas, contradição das contradições, pode muito bem acontecer que a democracia nesses Países não passe de mera ilusão. Há uma forte possibilidade de as forças fundamentalistas ocuparem o poder, criando Estados Islâmicos intolerantes, eventualmente financiadores do terrorismo. Parece ser já esse o caminho do Líbano, com a vitória eleitoral do Hezbollah. Os ventos que vão soprar do Norte de África e Médio Oriente não parecem augurar nada de bom.

 

Lisboa, 29-01-2011

 

 

2007

 

A notícia, a deformação e as implicações

     Lisboa, 22-11-07. Vladimiro Valadim, conhecido artista plástico afirmou, em entrevista ao Jornal Ocaso, publicada hoje, que é capaz de matar a mulher e os filhos. Segundo fonte segura, a Polícia Judiciária irá deter o artista para interrogatório. Esperamos receber mais desenvolvimentos deste caso a qualquer momento. Veja a entrevista integral em www.ocaso.pt (se não abrir, clique em prosa).

Jornal o OCASO

ENTREVISTA com Vladimiro Valadim. Jornalista: Florípes Xantes.

 

Vladimiro Valadim admitiu que era capaz de matar a mulher e os filhos

 

Ocaso – Sente-se um artista já consagrado?

VV – De modo nenhum. É mesmo com algum espanto, mas também muita satisfação, que vejo o meu trabalho tão reconhecido.

Ocaso – Ao ponto de receber a condecoração de mérito cultural. Isso foi o ponto alto da sua carreira até agora?

VV – Admito que sim. Foi uma honra inesperada e, ao mesmo tempo, um momento que me deu novo alento para continuar a trabalhar, a fazer aquilo de que gosto. Não sei se essa condecoração foi merecida, mas deu-me uma noção diferente da minha responsabilidade no mundo cultural.

Ocaso – Diferente como?

VV – Fez-me pensar que o meu contributo parece importante. E que o tenho de encarar de um modo ainda mais activo. No sentido de exigir mais de mim mesmo.

Ocaso – As sua obras têm sido objecto de alguma polémica, como explica isso?

VV – A arte não tem de ser consensual. Faço-a com convicção própria, sem me preocupar com o que possam pensar. Antes de mais, é uma obra minha e só depois é apropriada pelo público. Sendo assim, reflecte a minha concepção estética, a abordagem que decorre do que me rodeia e do meu estado de espírito no momento. 

Ocaso – Mas terá de admitir que a polémica tem funcionado como valor acrescentado às suas obras. Concorda?

VV – Não nego, mas nunca fiz nada para provocar ou alimentar essa polémica. Compra quem gosta. Quem não gosta tem todo o direito de dizer o que entende.

Ocaso – Hoje é um dos artistas que mais vendem no mercado nacional, mas tem consciência de que essa notoriedade pode acabar?

VV – Claro. Quando isso acontecer, terei de repensar o que faço.

Ocaso – Como assim? O que fará para sobreviver?

VV – Bem, ao certo não sei. Mas acho que sou capaz de fazer outras coisas, mesmo que não tenha nada a ver com arte. Tenho uma família para sustentar.

Ocaso – Sei que coloca a sua família acima de tudo. Como encararia uma situação em que a sua mulher e os seus dois filhos ficassem privados daquilo que hoje lhes proporciona?

VV – É difícil responder a essa pergunta. Antes de mais porque há vários níveis até à pura sobrevivência. Se a situação fosse mesmo difícil acho que me questionaria da capacidade de sustentar a minha família. No limite, talvez desejasse que morressem do que serem sujeitos a uma provação dessas. Nessas circunstâncias, eu também não desejaria viver.

Ocaso – Está a dizer que era capaz de matar a sua mulher e filhos e suicidar-se de seguida?

 

Confrontado com estas afirmações, deixou inopinadamente a nossa redacção, sem quaisquer explicações

 

VV – Não disse isso. Apenas que sendo a minha família tudo para mim, não vejo como conseguiria lidar com uma situação de limite.

Ocaso – Então admite?

VV – Admito o quê?! Colocou-me uma situação hipotética a que respondi com o coração. Se respondesse com a razão, teria dito que mesmo na pior das situações haveria de encontrar modo de os sustentar. Nem sempre vivi da arte e acho que sou capaz de desempenhar outras profissões.

Ocaso – Acha?

VV – Acho é uma forma de dizer que teria de mudar o rumo da minha vida, de reaprender, não uma incerteza ou manifestação de incapacidade. Mas porquê essa insistência mórbida?

Ocaso – Você é que respondeu morbidamente e aqui quem faz as perguntas sou eu.

VV - ...

 Ocaso - Nesta altura o nosso entrevistado, abandonou a redacção do Ocaso, sem uma palavra. Depreendemos que, depois das suas afirmações, não gostou de ser questionado sobre as mesmas e que até pode mesmo ir matar a mulher e os filhos. As acções ficam com quem as pratica.

 

A esta hora deve estar a matar a mulher e os filhos, se é que já os não matou

A Judiciária já deve estar no seu encalço, se é que não o prendeu já

Lisboa, 22-11-2007

 

 

2006

 

O Mundo pula e avança

 

     O Mundo pula e avança... Não vejo a bola colorida e muito menos a criança. Vejo os falcões sedentos de sangue. A guerra necessária à cíclica crise do capitalismo, legal no sistema, voraz nos propósitos, terrorista nos métodos. Aproveitando-se da globalização com a experiência e poder próprios dos grandes predadores. Não defendo o comunismo, apenas o equilíbrio numa base de humanismo. Sem também religião à mistura. O homem pelo homem, em igualdade de oportunidades e do seu justo valor.

    

     É uma utopia também. Talvez. Mas o que é certo é que a humanidade pouco evoluiu na sua organização. Vivemos ainda numa espécie de sucedâneo do feudalismo. A única diferença é que lhe chamamos democracia. Apenas nos limitamos a eleger uns quantos que, quando lhes apetece, fazem o que entendem, esquecendo o seu mandato ou representação. Apesar de toda a evolução tecnológica, com que nos recriamos e assumimos como conquista essencial, a verdade é que somos manipulados pelos grandes interesses económicos. Sobretudo pelos encontran representação nos partidos políticos e seus agentes.

    

     O próprio Estado está a assumir-se como uma empresa. Sem lucros, mas tendendo para a despesa mínima. Dito de outro modo, não se coíbe de privatizar o que seja ou possa a vir ser lucrativo, mesmo que a mais valia provenha dos cofres púbicos, minimizando os serviços a prestar. O equilíbrio das finanças públicas passa a ser um fim em si mesmo. Donde, como qualquer empresa privada, usa a crise económica para a reestruturação e dispensa de trabalhadores.

    

     Em França, o CPE deu o primeiro mote. Venceram os estudantes e os sidicatos. Mas não se pense que é já o início de um processo evolutivo que vai criar nova teoria económica mais humanista. Mas é um primeiro sinal forte que, perante outras situações de afronto do neoliberalismo, pode multiplicar-se. Os cidadãos estão ainda adormecidos à sombra de um consumismo imediatista, facilista no crédito, milagroso em tornar sonhos em realidade. Mas há o reverso, que muitos sentem já no quotidiano. E há pior. O desemprego que continua a subir, desgraçando famílias inteiras, deixando mais pobres mesmo quem poucos sonhos alimentava. Há agora ainda apenas revoltas interiores, mas o somatório delas, aliadas ao desespero, não pode levar a nada de bom.

    

     Se eu fosse político e, sobretudo, dirigente de um partido qualquer, cuidava-me. Um dias destes é bem provável que lhes sejam pedidas contas, e da pior maneira.

 

Lisboa, 10-04-2006

 

 

2005

 

Desmistificando...

 

     Vamos lá desmistificar alguns discursos, frases feitas e ideias que andam por aí a circular sobre a Administração Pública e os funcionários públicos, porque já me incomoda a lenga-lenga de sempre.

 

    A primeira é a de que o Estado não sabe gerir e que apenas as empresas têm essa capacidade. É o discurso da “Administração gorda ou omnipresente”, que defende o “emagrecimento” das funções do Estado, retirando-as da sua esfera ou concessionando-as a entidades privadas. Na base está o dispêndio descontrolado, o peso da despesa pública no PIB.

   

     Esquecem, esses arautos, sempre ligados a interesses privados, de dizer que não está provado que uma empresa pratique melhor serviço público com menos custos. Aliás, há muitos exemplos de concessões que em nada beneficiarem os utentes e que passaram a custar mais dinheiro dos cofres do Estado. Basta ver o que se passa nalguns hospitais e aqui bem perto de Lisboa. Também não fica provado que mesmo as empresas privadas tenham melhor gestão que os Serviços da Administração Pública. Recordo que, há não muito tempo, passei mais tempo na fila de uma reparadora de telemóveis que na Repartição de Finanças do meu Bairro Fiscal para entregar do IRS. E, ao fim de um mês, recebi três chamadas, de pessoas diferentes, a darem-me a conhecer o orçamento.

    

     Mas mesmo que os concessionários sejam capazes de prestar serviço equivalente com menores custos, é necessário saber como. Pode ser da diferença da gestão, aceita-se. Mas, a maior parte das vezes é a custa da precariedade do emprego. A filosofia neoliberalista não olha a meios para obter lucros. É cega ao social. É autofágica, porque, e médio prazo, se autodestrói. E quando assim acontece, muda de local, recomeça, restringindo ainda mais os direitos dos trabalhadores, prenunciando novo fim. Mas é a orientação que vai grassando não só por cá, mas também numa Europa que vai sucumbindo, aos poucos, às feridas sociais que se tentavam esconder com discursos vazios.

   

     O que estamos a assistir em Portugal é a tentativa de alguns sectores privados que, a todo o custo, e esgotados os seus horizontes internos e incapazes de competir a nível internacional, lançarem um anátema sobre o Estado e a Administração Pública para distribuírem entre si os retalhos da máquina administrativa, para engordarem os seus resultados. O prior é que parece que os políticos, desde há uns bons anos, parecem embarcar nesse esquema, o que é, de facto, muito mais preocupante.

     

     Em segundo lugar, chateia-me que se venha a considerar os funcionários públicos como bode expiatório da crise económica e do défice orçamental. Porque esse discurso está assente no anterior. Quando se quer conquistar algo, uma das formas é denegrir quem o detêm. Enfraquece, amolece, reduz a capacidade de manobra do alvo. Os funcionários públicos são tão profissionais como quaisquer outros trabalhadores dos sectores privados. Há bons e maus, claro. Mas quem não conhece maus profissionais em muitas empresas com que contacta?

    

     Depois, os funcionários públicos são pagos por todos os portugueses, donde diminuindo os efectivos da Administração reduz-se o défice orçamental e, consequentemente, poderá baixar-se os impostos, aumentando-se a capacidade de consumo e a revitalização da economia. Mas as empresas privadas vivem dos consumidores, que somos todos nós, incluindo os funcionários públicos. Donde, todos fazem sobrevier, indirectamente, todos. Diminuir as funções do Estado, deixando-o apenas para funções essenciais, se não se quiser ir ainda mais longe, não resolve problema nenhum, nem terá menores custos para a Administração Pública. O que tem de ser resolvido é o nepotismo e a incompetência de quem é nomeado para cargos públicos de responsabilidade. Quando deixarem de nomear os “boys” e apostarem em gestores, com conhecimentos e experiência, os custos vão diminuir drasticamente e os funcionários público vão poder trabalhar com empenho e qualidade.

  

     Para terminar e brevemente, porque me chateia mesmo falar disto, apenas uma pequena referência às eleições presidenciais. Cavaco, com a sua estratégia bem delineada, lá vai indo e somando. A esquerda, desunida e quase fratricida, desgasta-se a olhos vistos. No geral, os debates têm sido uma pasmaceira. Nem tanto pelo formato adoptado, mas pela falta de ideias, pelo repisar de generalidades. Sobretudo por, nalguns casos, se querer impingir a imagem de um Presidente da República que mais parece concorrer a Primeiro-Ministro. Não acreditando que nenhum deles não tenha lido a Constituição, parece-me, no mínimo, que continuam a pensar que somos todos tolos. Como vou votar em branco, estou-me nas tintas para quem ganhe, já que pouca mossa pode fazer. Mas quer-me parecer que Cavaco ganha mesmo na primeira volta. Que ele e Sócrates sejam muito felizes!

 

Lisboa, 15-12-2005

 

Segurança versus Liberdade

 

     Há um debate que se impõe. Já se estudava, já se comentava, mas só agora, depois dos atentados em Londres, parece ganhar alguma consistência. A UE, nos próximos tempos, irá discutir e, eventualmente, aprovar medidas que, de algum modo, podem diminuir ainda mais o nosso direito à privacidade. Telefones, fixos e móveis, e a Internet, estarão debaixo de olho das autoridades de Segurança. Os nossos contactos ficarão guardados, pelo menos os registos de origem e de destino e, claro, mais alguns dados, para ulterior análise, caso sobre nós recaia alguma suspeita de actividades terroristas. A verdade é que isso não constitui uma grande novidade, já podemos ser escutados e ter os nossos contactos devassados, desde que por autorização expressa de uma autoridade judicial.

 

     Não tendo muito a esconder e nem simpatizando com Bin Laden ou com todos os que afirmam as suas causas pela violência, confesso que isso me incomoda. Chateia-me, mesmo. Não gosto nada que me andem a espiar e, muito menos, a ouvir ou a ler as minhas conversas e mensagens. Apesar de não muito incomodado, bastou-me a PIDE e os gorilas da Faculdade de Direito. Mas, talvez a dinâmica do Mundo actual exija algum sacrifício das nossas liberdades individuais. É uma dúvida que me fica. Só que sinto também que não é assim que vamos lá. A erradicação do terrorismo passa por outro tipo de medidas, como o Pedro Farinha apontou num post abaixo. A dicotomia ocidente e oriente, norte e sul, são meros eufemismos para significar dominantes e dominados. Para significar que não há partilha, mas exclusão. Para significar que não há redistribuição da riqueza produzida no planeta. Que os ricos ficam cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. Que os Estados com maior poder se aproveitam dos que não têm meios para os enfrentar.

 

     Mas, tal como comecei, o debate impõe-se. Canetas, digo teclados, em acção!

Lisboa, 11-07-2005

 

Credibilização da política

 

     É um tema com pano para mangas. E já vão bem compridas. Depois de anos e anos a falar do divórcio da sociedade civil da política e, por inclusão, dos políticos, eis que parecem surgir alguns sinais de mudança.

 

     O primeiro foi dado pelo PS na constituição do actual Governo, quando a política tinha descido ao seu nível mais baixo com as trapalhadas de Santana Lopes. Descrição, sentido de Estado, que mereceram o apoio incondicional de todos os quadrantes. Depois, o anúncio de que os envolvidos no episódio pouco edificante da campanha para as Europeias ficariam de fora das Autárquicas.

 

     Agora, é Marques Mendes que, assumindo-se também com a postura de homem de Estado, afasta dois monstros sagrados, ao que parece mesmo à revelia das respectivas Distritais. É um acto de coragem que tem de ser louvado. Sobretudo, sabendo-se que o PSD pode sair bastante prejudicado com esta decisão. Mas é só assim, com gestos destes, objectivos e intransigentes, que a política pode ganhar credibilidade.

 

     Se ainda falta a grande vassourada, começa a perceber-se que os responsáveis políticos, pelo menos alguns, entenderam, finalmente que, mais do que as reformas que se impõem, é necessário mudar pessoas e, sobretudo, mentalidades. Pela minha parte só ficarei contente quando a classe política for finalmente extinta e integrada na Sociedade Civil, por só aí poderão ser os nossos verdadeiros representantes.

 

Lisboa, 08-05-2005

 

 

2004

 

Estamos tramados

 

     Com os políticos que temos e não me refiro apenas aos de cá. Um pouco por todo o Mundo, infelizmente, produto das novas concepções do liberalismo que, assentando apenas no lucro, deixou de fora o centro de todas as actividades humanas – o próprio homem.

 

     Começo pela morte de Arafat. Não pelo homem, que admirei como lutador por uma causa justa e cada vez mais pertinente, embora haja repudiado e continuarei a repudiar, os métodos que a OLP usou. Mas pelo ridículo do folhetim que rodeu o seu internamento e morte num hospital de França. De coma recuperável, a coma profundo e estado crítico, de envenamento a doença natural, de morto a vivo, assistiu-se à mais disparatada, confusa e contraditória informação. Ainda alguns diziam que iria recuperar e já se ultimavam o túmulo e os preparativos para a cerimónia fúnebre, com data e hora marcadas. Claro, o homem tinha de morrer mesmo, na madrugada da data do seu funeral, senão estragaria todos os esforços da diplomacia internacional. Foi a caricatura do que os políticos pensam dos cidadãos normais e o mais completo atestado de estupidez.

 

     Por estas bandas, houve evoluções curiosas. Uma apetência desusada pelo controlo dos meios de comunicação social, com ar de dejá vu, com um saneamento de peso e uma mudança por explicar na Informação da RTP. Um governo que se remodela ao fim de quatro meses, coisa nunca vista, e que conseguiu, pela primeira vez, reunir o consenso de todos, pela negativa. Vai haver, se houver, um referendo sobre a UE, cuja questão ninguém entende. Mas, curiosamente, há quem dissesse que isso também não tinha grande importância, porque é natural que não se conheça o projecto da nova Constituição Europeia, porque quase ninguém também sabe o que diz a Constituição da República Portuguesa. Se não sabem como justificar o disparate, pelo menos fiquem calados. Senhor Presidente, eu bem lhe disse que ainda ia ter muitas dores de cabeça... E olhe que acaba de se demitir o Ministro do Desporto e Juventude, o que ainda vai fazer correr nova e muita tinta.

 

     O PCP tem um novo líder. Jerónimo de Sousa, um operário por condição e autodidata por vontade, é o novo secretário-geral do partido que muitos acham que agora é que cavou mesmo a sua própria sepultura. Lamento, mas não concordo. Acho que foi um acto de lucidez. A retoma, sem condicionalismos, pelo PCP da velha filosofia pode ser um novo fôlego. Se falhou no Leste, não significa que o marxismo leninismo também tenha sucumbido. Falhou, porque falharam os homens. E é uma ideologia, a única que ainda sobrevive. Concorde-se ou não com ela, e eu não concordo, terá de aceitar-se que contém instrumentos mobilizadores e não só da classe operária. Não me espantaria nada se víssemos uma JC engrossada e mais pujante. Porque, numa altura em que não temos nada para acreditar, os comunistas podem fazer a diferença. É por isso que devem ter escolhido este novo caminho. Confundirem-se com o Bloco de Esquerda ou com uma franja do PS seria, isso sim, a sua morte. Mas esperemos para ver... A propósito, uma chamada de atenção a José Sócrates: a luta faz-se no terreno e é assim que se conquistam votos. É que não vejo o líder do PS fora dos espaços institucionais. Talvez não fosse má ideia começar já a calcorrear o país. As eleições podem estar muito próximas e convinha explicar às pessoas porque é que o PS é alternativa, antes que seja tarde.

 

     Cavaco Silva acaba de publicar um artigo que espanta, defendendo o afastamento dos maus polítcos. Mário Soares, Freitas do Amaral, Marcelo Rebelo de Sousa, e outros feitores de opinião pública, concordam. Só não querem dizer quem são os políticos incompetentes. São tantos, disse um deles, que levaria muito tempo a enumerá-los. Se me permitem, também concordo. Mas não faço a lista, simplesmente porque tenho dificuldade em enumerar os bons. Estamos mesmo tramados!

 

Lisboa, 29-11-2004

 

Carta aberta a Ferro Rodrigues

 

     Meu caro Ferro Rodrigues, embora não o conheça, a não ser pela janela mediática que nos escancara o Mundo portas adentro, tenho uma grande admiração por si. Primeiro, porque enquanto governante, esteve sempre acima das polémicas e máculas políticas, deixando um rasto de homem bom, já raro mos nossos dias. Depois, porque perante a crise de liderança do PS, teve a coragem de assumir o que outros, talvez melhor fadados para o cargo mas menos desprendidos e mais calculistas, recusaram liminarmente. Mais uma vez demonstrou ser um homem bom, com espírito de sacrifício, encarando os interesses do partido e do país com espírito de missão em detrimento da sua carreira política.

     Porém, as coisas complicaram-se. O processo da Casa Pia, de que certamente, não estaria à espera, foi mal conduzido, por sua responsabilidade ou por influência de quem o aconselha, o que vem a dar no mesmo. E isso diminui-o, irremediavelmente. Reduziu a sua capacidade de manobra e, sobretudo, a sua credibilidade como oposição. Pior, o PS, sob o seu comando, mesmo quando atenuado o escândalo da pedofilia, não foi capaz de se afirmar como alternativa permanente, forte, demolidora de um governo que não merecemos. Limitou-se a explorar casos, sempre tardiamente, sempre titubeante, sempre sem rumo definido, sem uma aposta consistente num projecto político de futuro. Não há uma estratégia global nem sectorial. Não se contesta a Reforma Administrativa, que faz dos funcionários bodes expiatórios e vis criaturas de um sistema pelo qual não são responsáveis. Não se apontam caminhos para uma política económica e financeira que explique aos portugueses, de modo simples e plausível, como se pode encetar a retoma, como se deve combater o flagelo dos despedimentos e a desgraça das famílias atingidas. O PS nem sequer foi capaz de dar resposta à acusação de que deixara o país de tanga. E ainda hoje a coligação lhe atira à cara, sem resposta, a culpa da crise, que já não é só económica mas, talvez mais, social. Ou é por ainda não ter expiado esse pecado que não ousa contestar?

     Mas que pecado sem absolvição é esse? Se o PS, enquanto anterior governo, deixou o país assim tão mal, como se explica que o líder da então oposição e actual primeiro-ministro, tenha prometido mundos e fundos na campanha eleitoral? Não tinha conhecimento do estado das finanças púbicas? Acaso o PS lhe sonegou informações? Porventura os economistas do PSD andaram a dormir na forma, deitando para o lixo os indicadores económicos e as contas do Estado? Partindo do pressuposto lógico de que dispunham da informação necessária, conclui-se que as promessas que levaram à formação do actual governo foram falsas porque assentes numa realidade que nunca permitiria o seu cumprimento. Donde, quem prometeu e não cumpriu ou é incompetente ou é mentiroso. Isto é assim tão difícil de explicar aos portugueses? Ou há mais alguma coisa que não saibamos e devêssemos saber?

      O que sei, e as sondagens vão confirmando, é que os portugueses estão, cada vez mais, fartos deste governo. O PS distancia-se do PSD em cada sondagem. Mas a cotação do líder dos socialistas diminui. Não é uma contradição. É aquilo que venho tentando dizer-lhe... O governo está a cair, aos bocados. A razão do PS subir é apenas o reflexo disso, como única alternativa possível. Não da actuação do seu primeiro responsável. Porque se o meu caro Ferro Rodrigues fosse também um líder bem quisto, o PS venceria as próximas eleições legislativas por uma esmagadora maioria absoluta. Talvez até, desde já, pusesse a nu as tensões conservadas em banho-maria entre os partidos da coligação e nos desse a alegria de eleições antecipadas. Para acabarmos como este martírio!

     Meu caro Ferro Rodrigues, faço questão de retomar o princípio desta carta. Reafirmando que o respeito e que, apesar da inabilidade para lidar com a maioria que domina o país, atribuo as culpas mais aos que o rodeiam do que a si mesmo. Mas, porque, como disse, o considero um homem bom, peço-lhe que reflicta e que assuma a postura que o pais espera de si. O PS vai ter uma expressiva vitória nas eleições europeias. A coligação ficará fragilizada, mas só cairá com um PS renovado. Tenha, por favor, a coragem de abrir caminho a uma nova liderança. Capaz de por termo à arrogância intolerável de um governo de direita que, todos os dias, espezinha os cidadãos de Portugal, que nos diminui aos olhos do Mundo, que nos vai restringindo, de novo, aos três “efes” de um período da nossa História que queremos esquecer.

     Bem-haja por ler estas linhas e muito grato lhe ficaria se sobre elas reflectisse. Eu e, garanto-lhe, muitos outros portugueses, dependemos de si, para nos reencontrarmos. Para respirar de alívio, para nos reafirmarmos como cidadãos de pleno direito. Aqui, em Portugal, no seio da Europa e no Mundo. Nesta globalização que criámos e queremos abraçar de novo. Peço-lhe, portanto, uma coisa simples, mas essencial para nós: - Devolva-nos a esperança! 

Lisboa, 30-05-2004

 

Corrida de espermatozoides

 

     Segundo notícia da BBC andam a fazer corridas de espermatozoides. E há coisas curiosas, como o facto de o espermatozoide não ter capacidade de orientação quando não está na presença do óvulo. Fica assim como que desgovernado, saltitando sem rumo definido, melhor dizendo, aparvalhado. Mas se o óvulo lá está no sítio onde deve estar, o espermatozoide “orienta-se” em grande velocidade. O problema é que são cerca de 20 milhões por ejaculação e nem sempre o mais rápido é o que apresenta melhor qualidade. E pior do que isso é que é preciso que o óvulo reaja, confirmando ou não a sua vitória final. Porque o óvulo parece bem menos precipitado, o que não quer dizer que também não se engane.

 

     Imaginem uma maratona, uma corrida de S. Silvestre, sei lá, daquelas que têm muita gente. Uns profissionais ou menos amadores e outros que só vão lá para esticar as gambias. Já viram o que era fazer depender a vitória da qualidade, que fica por saber-se como é analisada, ou, pior, da atracção exercida sobre o júri, neste caso composto apenas por um elemento? E se fosse do género feminino e ficasse à espera do principie encantado que até poderia ser o último? Era mesmo chato e monótono. E se o tal nem chegasse à meta? Não havia resultados, não era? Às vezes, é bem melhor, mas quando se quer é triste.

 

     Esta história, vista com algum optimismo, deu-me uma ideia. A corrida noticiada passa-se nos tubos de ensaio de um laboratório. Mas, imaginemos que poderia ser uma corrida à vista de todos, num qualquer recinto desportivo. Não estou insano, não senhor... Então não há jogos de escarretas e outras se calhar ainda mais estúpidas? Porque não se pode fazer então uma corrida de espermatozoides? Como? Eu explico...

 

     Seria uma contenda a duas mãos. Mau, lá estão vocês a desconversar... Referia-me a dois tempos. O primeiro é o da ejaculação, podendo cada jogador recorrer à inspiração que melhor optimizasse o seu desempenho. De novo?! Estou a falar de questões técnicas, não do que estão para aí a roer entre dentes. Seria sobre uma espécie de mesa comprida, medindo-se a distância que cada um conseguiria atingir. A segunda etapa seria a corrida dos espermatozoides para os óvulos, tantos quantos as jogadoras, que estariam colocadas no final desse circuito, com um preparado especial que tornaria fluorescentes espermatozoides e óvulos. O resultado final resultaria da ponderação das duas mãos, coisa que deixo aos entendidos em competições e aos técnicos da matéria.

 

     Se a moda pegasse, poderíamos até ter os políticos a tecer argumentos por este processo. Não sei se seria um sacrifício para alguns, mas pelo menos seria bem mais divertido e, se calhar, bem mais consolador para outros. Duvido é que muitos tivessem a coragem de demonstrar na praça pública os dotes de macho latino. E, pior que tudo, só agora me lembrei de um pormenor que pode ser devastador... E se o espermatozoide de um jogador não alcançasse o óvulo a que se destinava e fecundasse o do lado ou, horror dos horrores, o mais afastado da sua trajectória politicamente correcta? Promiscuidade, diriam uns. O habitual, diriam outros. Cá por mim, estou-me nas tintas. Só inventei este jogo por prazer. Mas, parece-me que, mesmo a brincar, há jogos que se tornam perigosos quando próximos da realidade.

 Lisboa, 13-04-2004

 

Coisas de Loucos

 

     Toda a gente conhece histórias de loucos, uns mais sãos de que outros, mas todos loucos, internados ou à solta. Lembro-me mesmo de ouvir alguém a contar episódios, mais ou menos, reais, que, por vezes, de loucura, só tinham os trejeitos e o olhar esbugalhado do contador. O real, se o era, assim dito, transformava-se num surrealismo quase delicioso, transportado para a anedota de café ou de cervejaria, bem comida e regada, com um ou outro intervalo de desanuviamento.

 

     Desde o louco que estava internado por erro da democracia – porque simplesmente dizia que o Mundo estava maluco, mas a maioria afirmava o contrário -, até ao que passeava a bota, agarrando o atacador, como se fosse uma trela e gritava: “Anda, Bobi!”. Para quem não conheça a história, é bom esclarecer que ele só fazia isso por pirraça. Quando alguém lhe perguntava “Então a passear o cãozinho?…”, ele respondia “Ah... e eu é que sou maluco?… Então não vê que isto é uma bota?”. Virada a esquina mais próxima do manicómio, voltava-se para a bota e dizia “Boa, Bobi, já enganámos mais um…”.

 

     Mas eu próprio assisti a alguns casos que provam que os loucos não são tão doidos quanto se supõe, todos maluqinhos do “Júlio de Matos”, em serviço externo. Um deles tinha a mania de que era eléctrico e, com o braço direito levantado, acertava o passo em cima de um dos carris que descia para a Praça do Chile, até que o tlim, tlim do verdadeiro amarelo o afastava para o passeio, sinal de que a maluquice não afectava o seu instinto de sobrevivência.

 

     Outro, mais prosaico e mundano, negociava pelos cafés da mesma praça, primeiro pedindo um pastel de nata, depois tentando vender o mesmo, até que alguém, em desespero de causa, lhe oferecia um café, completando a ementa pretendida, deixando-me a sensação de que teria de reavaliar os meus conceitos de loucura e de inteligência prática, para não entrar em sofisticadas noções de markting.

 

     Mas o que me enchia mesmo as medidas era o que batia numa lata de banha vazia, porque despertava as consciências mais sonolentas. Era um maluco alto, esguio, bem vestido, com um sorriso aberto, quase até às orelhas, que atacava, normalmente, no Campo Pequeno, numa paragem de autocarro perto do “Tátú”. De mansinho, aproximava-se da fila de espera, andava de um lado para o outro, até se familiarizarem com a sua presença. De repente, parava e desatava a bater na lata. Claro que toda a gente se assustava com o repentismo, mas logo se recompunham ao verem de quem se tratava. E o maluco então desatava a correr, batendo ainda mais desalmadamente na lata, até que desaparecia em direcção ao Campo Grande. Quem esperava o autocarro, depois do susto, recompunha-se, olhava e sorria para o companheiro de fila de espera, encolhendo  os ombros, mas, invariavelmente, esboçando um sorriso natural que, porventura, seria o único daquele dia de uma vida mal parada na paragem de um autocarro para a Póvoa de Santo Adrião, Santo António dos Cavaleiros, Loures e por aí fora. Sempre fique com a convicção de que este maluco era uma espécie de anjo do fim da tarde, encarregado de fazer sorrir a quem se resignava à adversidade.

 

     Tudo isto leva-me a repensar os conceitos de doido, louco e maluco, que não são, necessariamente, sinónimos, e, muito menos, reveladores de deficiência mental. Mas mesmo que sejam, onde se situa o padrão que os distingue? Bom, como já é tarde, vou-me recolher aos lençóis e sonhar com um mundo cor de rosa, doseando, calma e equilibradamente, a doidice, a loucura e a maluquice que me cabe, extrapolando que todos os outros são, no mínimo, mais doidos, loucos e malucos do que eu.

 

Lisboa, 25-02-1999

 

Educação para a Cidadania

 

  Apetece-se, desde há uns bons meses, escrever sobre retomar este tema, apenas tratado na perspectiva de “Escola para pais”. Só não o fiz porque sou naturalmente optimista. Mas agora chega, estou pronto para partir a loiça e quem quiser que apanhe os cacos. É o modo mais normal, hoje em dia, de dar nas vistas, de ser ouvido. Mas, ainda com alguma condescendência, vou tentar sintetizar o que penso, em jeito de conselho. Não paternal e muito menos de cátedra, mas tão só de experiência feita e, sobretudo, de cidadão inteiro e que pretende contribuir para o bem-estar da sociedade a que pertence. Vamos a isto...

 

     A modelagem da família é fundamental, mas o que se aprende na escola pode alterar os comportamentos individuais e familiares. Há uma interactividade entre a criança e os pais em consequência do que aquela aprende e transmite ou amplia no seio familiar. Por vezes, é a criança que leva para casa novas abordagens, novos comportamentos.

Neste contexto, a Escola é essencial. Não se pode demitir da sua função social. Tem de entender que, infelizmente, há pais que não têm capacidade para educar os filhos numa perspectiva de futuro e, mesmo que disponham dessa quase rara qualidade, nos dias de hoje, o tempo é um adversário cruel. Quando os pais nem tempo para si têm, nenhum terão para dispensar aos filhos, apesar do milagre da multiplicação que se vai tentando entre as muitas solicitações da televisão, da Internet e dos jogos multimédia, num período que deveria ser de convivência e relaxamento para todos. A noite acaba em ultimatos, como medida drástica de descanso forçado.

 

     A formação adequada de uma criança vai fazer a diferença pela vida fora. É por isso que não entendo que responsáveis pelo ensino venham dizer, quando lhes apraz, que a Escola não se substitui aos pais. Parece uma máxima inquestionável, à partida, mas não é verdadeira. Mais do que nunca é necessário que a Educação abranja todos os fenómenos sociais e enquadre os destinos dos futuros cidadãos. A Sociedade de agora exige do Estado um comportamento mais responsável e solidário. Preparar para a cidadania é, cada vez mais, uma responsabilidade do poder executivo e uma necessidade colectiva.

 

     Quotidianamente, fala-se de desvios comportamentais, de infracções à lei. Mas esquece-se a mudança de valores ou a ausência deles, esboroados por um liberalismo feroz, que convida ao consumismo, ao fútil e acessório. Não está em causa a manutenção de valores passadistas ou obsoletos, mas de saber distinguir, no turbilhão do assédio diário a patamares de sonho impossível, onde começa e acaba a realidade. Os políticos ajudam a criar incertezas, pelo exemplo. Não construindo, mas destruindo com as palavras. Não há um projecto, nem nacional nem de nenhum partido. Gerem-se os discursos ao sabor das conveniências de ocasião. As pessoas alheiam-se do país e perdem-se na vida comezinha do deve e haver.

 

     É preciso entender, de uma vez por todas, que tudo isto tem a ver com educação. Educação para a cidadania. Um cidadão educado, em princípios moral e colectivamente aceites e praticados, raramente prevarica. Respeita o Código da Estrada e paga os seus impostos. Não se comporta em função da coima, multa ou pena. De pouco adianta agravar punições, se quem a elas fica sujeito não tiver interiorizado a razão dos comandos legais. Obedecer à lei não pode ser apenas uma obrigação, mas mais um dever, um modo de estar, de coabitar em Sociedade. A infracção e o abuso não podem ser as regras, mas as excepções. Em vez de penalizar, o poder devia, antes, preparar. Começando pelos bancos da Escola. A mudança de mentalidades leva tempo, mas é preferível apostar a médio e longo prazos.

 

     Parece-me, portanto, que se terá de rever não só o papel da Escola como o seu conteúdo programático. Numa Sociedade, em mudança constante, cada vez mais competitiva e selectiva, há que ter a noção prática do ensino. Formar licenciados em áreas desadequadas da realidade social e económica, só leva ao desemprego ou à insatisfação pessoal e profissional. Uma perspectiva de conjunto, assente no conhecimento do terreno e num consenso nacional para o desenvolvimento, impõe-se. Claro que não é isto a que me propus tratar neste artigo, mas é duvidoso que uma qualquer educação para a cidadania dê frutos num país sem rumo. Quanto a esta, como já se entendeu, defendo a inclusão de uma cadeira, desde a primária até à universidade que forme cidadãos de corpo inteiro. Deixo aos cientistas da educação o conteúdo das matérias a tratar em razão da idade e grau de ensino, sugerindo apenas alguns temas a abordar, sem ordem de prioridade: Civismo e Interrelacionamento, Saúde, Sexualidade, Valores Morais da Humanidade, Preparação para a Política, Preparação para Pais, Novas Tecnologias... Embora me apeteça, não vou meter foice em seara alheia e sumariar cada um destes ou de outras matérias possíveis. O que me parece perfeitamente razoável, e quase garantido, é que se o poder político enveredar por este caminho desde já, numa década teremos pessoas mais bem formadas, mais responsáveis, mais capazes, menos prevaricadores, melhores cidadãos. Pensem nisto e, se não se importam, experimentem... Não reivindicarei nunca direitos de autor, basta-me o consolo de ver os resultados. Como alguém que ainda se revê no seu país. Que acredita, sem sentimentalismos, mas com a certeza da nossa capacidade em enfrentar e vencer desafios. Assim quem nos governa tenha essa visão de futuro...

 

Lisboa, 07-03.2004

 

Classe média

 

     Isto de pertencer à classe média é uma chatice. Quer o governo seja de direita ou de esquerda são sempre os mesmos a pagar a factura. São a inteligência da nação, mas não parecem tão inteligentes em impor-se. Ficam entalados no meio das fracturas sociais, espraiam-se em conjecturas sábias mas pouco práticas. Soçobram sob as suas próprias ambivalências. Namoram à direita, condescendem à esquerda, lixam-se no meio. Têm sonhos, alimentam projectos, perdem-se nos medos. Com a idade, pioram. Fazem discursos de sofá, tendo por inimiga a televisão. Esquecem-se que a realidade está lá fora, na rua, na pressão colectiva, na demonstração da força da razão. Já o fizeram, mas agora o cu pesa, a comodidade instalou-se. A mente ainda funciona, agora até com muito mais informação, corrigida e aumentada. O cérebro capta, ordena, distingue, selecciona, indexa e guarda. Quando lhe é pedida resposta, assinala a contradição, a vontade esboça-se, mas desvanece-se perante a recusa do corpo. E ficam parados, com a mente em sobressalto.

 

     O pior mal da classe média é o de esquecer-se que sendo de todas as cores políticas não é representada por nenhuma. É o de não se identificar nem com os pobres nem com os ricos. É o de julgar que é capaz de mudar a sociedade ou de ter o poder dos dominantes. Por isso a classe média não têm identidade. É apenas uma massa anónima, com uns quantos iluminados ou luminárias que se destacam pelo génio, mas sem mais nada que a fama efémera dos momentos solenes e o legado que a História se encarregará de escrever nalgumas páginas. Concebem, constroem, criam riqueza para os outros. Morrem, geralmente, esquecidos, sem citações públicas, a não ser que tenham atingido o patamar de mediáticos, não importa como, ou eles próprios façam parte dos media e, claro, nesse momento, se mantenham no topo ou no activo. É que os media fazem e desfazem, mas não mudam o estatuto.

 

     A classe média vive em depressão. Apesar do saber, trabalha por conta de outrem. Vive entre o medo de perder o emprego e a ambição de mudar o sistema. Refugia-se nos sedativos e nos euforisantes. Consulta o psiquiatra com frequência. Sacrifica-se para comprar uma casa que só será dela ao cabo de algumas pinturas e muitas obras interiores. Mesmo assim ainda vai poupando para as férias de sonho, que raramente realiza. Tenta ser apresentável, nos trapos e no carro que mostra, mas tem de cortar no almoço e jantar. Espraia-se na contabilidade criativa dos cartões de crédito e do crédito pessoal instantâneo. Penhora, se necessário, os objectos de valor. Recorre à ajuda da família, dos pais em particular, mesmo que a reforma destes pouco possa adiantar. Ficam em casa, quando, contas feitas, nem um cinema ou a gasolina podem avolumar mais o deficit anunciado. Vivem entre a abundância fictícia e a amargura da realidade. E, quando pensam que a reforma está próxima, lá vem a lei denegar-lhe os direitos. Prolongar-lhe a agonia. Morrendo aos poucos, remoendo impropérios e remorsos, a classe média definha sem estertor. Como um animal pacificado, ciente do sacrifício inevitável.

 

     A classe média não existe. É uma invenção estatística. É um número dos media. É uma necessidade dos ricos, para manter a distância dos pobres. É o tampão higiénico que sangra alguns dias antes do final do mês e se deita fora com o primeiro extracto bancário. Na esperança vã do vencimento multiplicado. Mas o multibanco não se engana. Não engana. Aperta. Aperta-se o coração. Deseja-se que o tempo passe depressa, até ao dia do novo pagamento. Esquece-se que, assim, a vida fica cada vez mais curta. Os sonhos ficam por sonhar. Inexoráveis, vêm as rugas, as maleitas, os centros de saúde, as farmácias. A peregrinação, a via-sacra dos dias decadentes. Para quem não existe, a vida é dura. Para quem não conta, até o milho dado aos pombos do jardim, parece um milagre. Para quem foi faz-de-conta, morrer, pelo menos, não será um pecado.      

 

Lisboa, 19-02-2004

 

 A Obra

 

 Está na moda os políticos apresentarem “obra”. Não é novidade, dirão os mais distraídos. Pois não, se obra não estivesse entre parêntesis. É que agora não se trata de um eufemismo para significar as realizações mais ou menos mediáticas, traduzidas em contribuições diversas, mais ou menos significativas, para a sociedade, mas de construção civil, tal e qual, assim mesmo. Túneis, estradas, edifícios e todas as coisas que se vejam bem, de preferência ainda ao longe. Estas obras é que deviam ter parêntesis, mas a vida é assim, as palavras mudam ao sabor das circunstâncias.

      Que havia um forte lobby da construção civil já tínhamos ouvido falar, agora que os políticos comecem a ter apetência pela profissão de empreiteiro já me causa algum espanto. E chegam até a discutir o peso dos livros que publicam. Perante um de 20 gramas, o outro vangloria-se do quilo que publicara no ano anterior. As coisas estão assim. Os políticos digladiam-se agora pelo peso das suas obras (já nem vale a pena por parêntesis nisto). E assumem-se como empreiteiros de obras públicas. Quem constrói mais e mais pesado fica na crista da onda, sobre a espuma do mar atormentado da cena política nacional.

      É uma opção inteligente. Como do discurso habitual já nada se aproveita, há que ser original. Se é que isto tem alguma originalidade. Qualquer dia, por falta de espaço em superfície, vão ter de medir forças em altura. Já terão esventrado tudo por debaixo e enchido todos os terrenos do Estado. A aposta será, agora, ver quem é capaz de chegar mais acima. Não falta muito para recuperarem aquele projecto para a área da Lisnave. Mal recusado, diga-se. Se eu fosse primeiro-ministro tinha-o agarrado com unhas e dentes. Que falta de visão, meu Deus!...Instalava o meu gabinete e todo o meu staff no último andar, acima das nuvens. Num plano superior, intocável, qual deus do Olimpo, nunca teria de me preocupar com as reles questões dos mortais. Governaria, por inspiração divina, como um pai a quem compete velar pelos seus filhos longe de casa. Não sei é se os patos bravos voam a essa altitude... 

Lisboa, 22-01-2004

 

 

2003

 

Direito de Antena

 

     Um dia destes ainda crio uma associação qualquer para ter direito de antena na RTP. Sei que serão apenas alguns segundos, mas vou aparecer em casa de uns milhões de portugueses e dizer o que penso sobre uma data de coisas. O problema é que ainda não entendi como é que aquilo funciona. Ora estão uns meses sem dar direito de antena a ninguém, ora, dias seguidos, lá temos o prazer de ir conhecendo umas ilustres associações de que nunca tínhamos ouvido falar e que se limitam quase a desejar as boas festas aos associados.

    

     É ridículo! Pelo sistema e pelo tempo concedido. Se é um serviço público, que seja prestado como deve ser. Claro que a culpa não é da RTP mas da lei. E se há leis estúpidas esta é uma delas. Qual era o problema em reservar 10 minutos diários, antes do Telejornal, para que as organizações ditas civis pudessem dar-se a conhecer, explicarem o que fazem, as dificuldades e os êxitos, os seus projectos, em 2 minutos? Dava 5 por dia. Calma, estava-me a esquecer daquela voz off que vai intercalando cada intervenção com a mania legal da responsabilidade. Não bastava dizer no fim de todo o bloco que ela é dos intervenientes? Até parece que português é duro de ouvido e que são todos uns atadinhos. É ridículo. Nalguns dias a voz off tem mais direito de antena do que os intervenientes.

    

     E os partidos e as centrais sindicais? Pronto, que tenham mais tempo. Que intercalem com os dias dedicados às outras organizações. Que até falem os 10 minutos, descontando a apresentação e a voz off. Mas que deixem falar todos os que quiserem. Assim, mais vale não ter. É mesmo ridículo. Mas nós temos também o direito de saber, de conhecer, de ser informados. Ou têm medo da participação? Se não têm, alterem a lei e a grelha da RTP.

 

Lisboa, 05-12-2003

 

Os PEC(ados) da UE

 

     O Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Europeia está a afogar-se num mar conhecido mas sempre tormentoso. É o caminho que vem sendo seguido, por vezes calmo demais, vezes demais ao sabor de interesses muito pouco comuns. Assim, a UE não se vai afirmar tão cedo, perante os seus membros e perante o Mundo.

    

     O PEC, tal como foi formulado, é uma estupidez. Condiciona o recurso ao investimento público, usando uma política financeira mais que experimentada, como motor de arranque da economia nos ciclos de crise, como o actual. Impedia, melhor dizendo, porque a Alemanha e a França marinbaram-se para as regras que propuseram e fizeram aprovar. Donde fica a ideia de que ou o PEC foi estabelecido com alguma ligeireza ou não tem de ser cumprido por todos os membros.

    

     Há, porém, uma outra leitura. Um pouco por todo o Mundo dito desenvolvido retomam-se ou reformulam-se políticas neoliberalistas que tendem em assentar na economia não como um meio mas como um fim em si mesmo. O elemento humano, último destinatário da criação de riqueza e bem-estar, cede aos lobbys dos grupos económicos, numa lógica cega de lucro, acentuando o fosso em ricos e pobres. Instiga-se ao consumo e fragiliza-se o cidadão, enredando-o numa teia que o vai diminuindo, deixando sem sentido direitos, liberdades e garantias. A Constituição vai transformando-se num livro de contos de fadas e, no nosso imaginário, aspiramos a um qualquer país das maravilhas. Ficámos ingénuas crianças, sem defesas e órfãs de esperança.

    

     Vamos por maus caminhos. E não merecemos a arrogância e incompetência de quem nos governa, em nome de nada, a troco de tudo. Se a UE parecia um refúgio, esmoreceu a segurança. Quem pensava que a Europa poderia ser contrapoder aos EUA e afirmar-se a uma só voz no Mundo ainda vai ter que esperar bastante. Neste cenário, que esperar da Constituição que tão acesa polémica vai criando e da inclusão de novos membros?

    

     Os pecados da União Europeia são próprios, mas também entroncam nos mesmos males que vão perpassando o planeta. Quando seria de esperar que a globalização levaria a uma aproximação, estamos distantes, intransigentes, clivando diferenças. Não é só uma crise de valores, somos nós, que adormecemos, embalados na doce nostalgia dos sonhos que inventámos.

 

Lisboa, 29-11-2003

 

País que não existe

 

     Que país é este, onde vivo, vivemos? Onde se violam e matam crianças de 2 anos. Se abusa de crianças e jovens desprotegidos, por gente supostamente importante e mais supostamente defensora dos elementares princípios dos direitos humanos.

           

     Onde a política é um pântano no meio de uma floresta perdida. Impera a lei do mais mesquinho. Não se olha a meios para atingir os fins, por mais inúteis e efémeros que sejam.  Onde se perdeu a noção dos valores básicos. A honra é um conceito sem sentido. O civismo é uma palavra que serve apenas para os outros. Na sociedade, na política, na estrada... Onde a auto estima está em negativos. Lá por fora já perceberam. Aqui ao lado, em Espanha, o El Pais faz eco. Mas, mais longe, um pouco por todo o Mundo que nos conhecia, ou passa a conhecer agora, pelo mais sórdido em que vamos sendo notícia, como no caso de Bragança, na Times. Onde o segredo de justiça anda nas sarjetas ao sabor das diatribes políticas e pessoais. A guerra institucional ameaça o sistema, numa espécie de suicido alternado, que ameaça globalizar-se à nossa medida. Onde não há Governo nem oposição. Denigre-se a imagem da própria Administração, humilhando a função pública, deixando os funcionários na condição de bodes expiatórios. Viabilizando um Orçamento e projectos de lei, supostamente reformadores, que vão agravar ainda mais a ausência da resposta socialmente devida aos cidadãos.

           

     E ninguém faz nada. Ou são reservas e garantias dos cidadãos ou consomem-se em discussões estéreis que só acrescentam lama ao lamaçal em que se atolaram. Este país não existe. É uma espécie de pesadelo. Tenho esperança de que, um dia destes, acordemos, ainda estremunhados, para uma realidade diferente. Com um sorriso, ainda de dúvida, condescendente com os sonhos das noites mal dormidas. E este país, que é meu, como de tantos outros que lhe dão vida, passará a existir de novo. Neste melodrama do fado, mas digno, dando-nos o orgulho de sermos portugueses.

 

Lisboa, 20-10-2003

 

Mundo chato

 

     Mundo chato este em que vivemos. Quando, perante o desenvolvimento tecnológico,  seria expectável que também tivéssemos descoberto um sistema político interactivo, eis que nos quedamos ainda a discutir os males da democracia e a ausência de escrúpulos dos que governam. Realmente não há maneira de nos entendermos enquanto gente e, pior, enquanto sociedade. O divórcio entre quem manda e quem dá o poder de mandar é, cada vez mais, evidente. Porque mais se alheiam de endossar procuração e menos qualificados se esgatanham por a ter. A prova é que os políticos, sabendo que o casamento corre perigo, fazem como os cônjuges acomodados. Por conveniência, nada fazem para alterar o curso dos acontecimentos.

    

     Blair e Bush estão sobre o fogo da fogueira que eles próprios atearam. E, como era de esperar, não conseguem despir a pele de aprendizes de feiticeiro. O problema é que venham ou não a cair, venham ou não a ser reeleitos, já não se pode anular a guerra do Iraque, não se pode evitar as mortes, o sangue. Em troca, até agora, de nada. Ocorreram as maiores manifestações de sempre, mas apenas antes. Depois, nada. Agora, que a razão delas parece confirmada, assiste-se a uma impávida e serena letargia, escudos arrumados, palavras embainhadas no dolce farniente. Não se pedem explicações, não se condena ninguém. Deixa-se aos Parlamentos e, sem grande entusiasmo, à comunicação social o papel de julgar. Com o tempo, até os discursos mais severos vão amolecer e cair no esquecimento. Com Blair e Bush ou com outros que os sucedam, a história irá repetir-se.

    

     Não gostava de Sadam, como não gosto de qualquer ditador. Ainda bem que foi deposto, como me agradaria que fossem afastados todos os outros. Mas a questão não é essa. O que está em causa é o Direito Internacional. Uma guerra feita à revelia das Nações Unidas, com fundamentos e pressupostos que, afinal, não se verificaram. Há responsabilidades a atribuir, sanções a aplicar. Aos que actuaram directamente e a quem apoiou. Porque estes, na ausência de legitimação pela ONU, viabilizaram, na prática, a intervenção militar. Esperemos que as consciências depertem de novo, que o cordão humano formado à volta do planeta ressurja. Que sejam retiradas as conclusões que se impõem...

    

     A agora podíamos também falar de incêndios, dessa onda devastadora que varreu o país, mas fica para a próxima. Deixemos acalmar os ânimos.

  Lisboa, 05-08-2003

 

Sociedade Civil

 

     A RTP2 vai ser entregue à “Sociedade Civil”. Sou daqueles que andam de candeias às avessas com a televisão. Cada vez mais, vou optando pela rádio, face ao “lixo” e à cultura da desgraça que grassa nas estações ditas de sinal aberto. O pequeno oásis que era o Canal 2, deu alguns sinais de seca nos últimos tempos e o Canal 1, de que se esperava uma significativa mudança na perspectiva de serviço público, poucas melhorias teve. Se é de assinalar, pela positiva, o programa “Passo a palavra” – em que o Nicolau Breyner se tem revelado como uma agradável surpresa -, já a Informação insiste em ser igual aos seus pares. O meu caro José Rodrigues dos Santos, que muito prezo, não parece ter sido capaz de entender ou de, pelo menos, colocar em prática, um novo conceito de Telejornal que faça a diferença. Que não abra com uma “caixa” sobre futebol no dia em que o Primeiro-Ministro fez uma importante declaração sobre a Administração Pública (24.06.2003). Que não privilegie o sensacional e o negativismo, num altura em que estamos a precisar de alento, para ultrapassarmos as dificuldades que o país atravessa. Não pretendo “contos de fada”, apenas um pouco de apelo às nossas capacidades, ao direito que temos de ser felizes. Com realismo, realçando também o que temos de bom, de positivo, o que se vai fazendo, todos os dias, por este (nosso) país.

     Mas há aqui um contra-senso que não entendo. Entrega-se a RTP2 à “Sociedade Civil” – da qual parece que faço parte – e obrigam-me (obrigam-nos) a pagar mais 15% de taxa ou contribuição para manter a televisão e radiodifusão públicas. Agora que me dão de “mão beijada” uma estação de Tv, vou ter de ver a factura mensal aumentada porquê? Passo a ser accionista ou só vou ter direito a continuar a “mandar vir” em silêncio? Será que posso, pelo menos, dar palpites sobre a programação? Desconfio que não. Aliás, desconfio que apenas vou pagar mais e mais nada. E vou ter de pagar uma televisão que não verei se não me interessar? Acho mal, muito mal. Não é muito democrático. Que se lixem os 2 euros ou lá quanto vou ter de desembolsar. Não gosto é que me vão ao bolso sem minha autorização e ainda por cima para financiar o que não me faz falta ou não me acrescenta nada.

     A chatice é que se já não percebia o que era a “Sociedade Civil”, fiquei a entender muito menos. Eu, que pensava fazer parte desse grupo, fico agora ainda mais diminuído e frustrado. Sendo certo que não me vão fazer gestor ou, pelo menos “porta-girafa” da nova estação televisiva, passo a ser mero pagante de um serviço que não encomendei. Donde, parece-me legítimo conjecturar que aquilo que entendem por “Sociedade Civil” vai ficando cada mais confinado aos que só quase têm deveres e obrigações. Começo a ficar farto. Farto também que me digam que posso resolver isso através do voto. Não quero eleger políticos que deixem de pertencer à Sociedade Civil.

     Desculpem o tom desabrido, mas acho que esta gente, depois de eleita, fica paranóica. Falam da Sociedade Civil como se pertencessem a outra. À Política?! E isso é lá alguma sociedade?! E depois pede-se respeito pelos políticos... Parem, pensem, ajam e ganhem a nossa confiança. Respeitem-nos. Assim, talvez os respeitemos também, mas apenas quando sentirmos que pertencemos à mesma Sociedade. 

 Lisboa, 26-06-2003

 

A Justiça é cega?

 

     Devia ser e acredito que é. No sentido de que é imparcial, não olhando à importância relativa de quem cai sob as suas malhas. Todos são iguais perante a lei, é uma espécie de afirmação que, hoje em dia, pelo simples facto de ser feita, leva a crer que pode não ser bem assim. E, na perspectiva da comunicação social, não é mesmo. Independentemente da inocência ou culpa da Dr.ª Fátima Felgueiras, é inacreditável que os telejornais de todas as televisões ditas de sinal aberto abram com um conferência de imprensa de quem, em termos de estatuto legal português, se encontra fugida à Justiça. E a RTP1, serviço público, acrescentou uma longa entrevista, onde ela pôde dizer tudo o que pensa e quis. Não foi caso único, mas a continuação de uma espécie de telenovela da vida real que já vai com uns bons episódios e promete ser bem mais longa que “O Anjo Selvagem”.

    

     Não está em causa que a comunicação social promova debates e participe na discussão que se impõe sobre a Justiça, apenas que o fez quando figuras públicas começaram a estar a contas com ela. Mas também não deixa de ser verdade que o mediatismo deu início a um processo que parece imparável e em que os órgãos de comunicação vão assumir, cada vez mais, um papel preponderante. A questão já não está em quem foi ou poderá ser preso preventivamente, nem sequer nos crimes que possa ter praticado, mas começa a centrar-se no campo político e na avaliação do funcionamento da máquina judiciária. Isso provoca emoções e reacções, a quente. Como a do Secretário-geral do PS, a propósito do Caso Paulo Pedroso. Como a do Sindicato dos Juízes face às declarações do responsável da Ordem dos Advogados pelo Direitos Humanos na Assembleia da República, anulando a sua participação no Congresso da Justiça.

    

     Os nervos estão à flor da pele. Como vem aconselhando o Presidente da República, há que ter a serenidade suficiente para destrinçar o acessório do essencial. O Sistema Judiciário também pode e deve ser criticado. Não ao sabor de casos mediáticos nem no calor das manifestações de apoio a arguidos que usufruem da efemeridade da fama ou da visibilidade que têm perante os seus concidadãos. A frio, com a prudência que se impõe e se espera de quem faz a Lei e aplica a Justiça, há que repensar o sistema e encontrar o justo equilíbrio entre os interesses colectivo e individual, num regime democrático ainda jovem, que, não sendo perfeito, nos colocou no seio dos Estados defensores dos Direitos Humanos. Algumas matérias, como a da prisão preventiva e das escutas telefónicas, têm de ser revistas. A celeridade processual não pode ser um objectivo inatingível, tem de ser uma realidade já. Não faz sentido condenar na praça pública, perder a saúde atrás das grades, para, muitos meses ou anos depois, se obter uma absolvição, convicta ou por falta de provas, que ninguém reconhecerá publicamente.

    

     A condenação ou absolvição públicas não são próprias de uma sociedade que se pretende moderna. À Comunicação Social é exigível, em particular nestes momentos, sentido de responsabilidade e de didactismo. Mas aos políticos e aos operadores da Justiça também se exige – e a eles sobretudo -, que saibam interpretar o seu papel. A atitude e comportamento que se espera e se reconhece aos grandes homens nos momentos cruciais. É que os cidadãos estão contentes por ver que a Balança da Justiça começa a ter os pratos equilibrados, mas também vão-se dando conta de que há pesos que carecem de aferição. Sejam capazes de os calibrar. Só assim haverá o respeito que todos nós devemos às Instituições e que o Senhor Presidente da República bem frisou no último Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.

 

Lisboa, 11-06-2003

 

Dia de Portugal

 

     O Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas comemora-se a 10 de Junho. Mas é uma data que passa despercebida no nosso país. Quase apenas mais um feriado. No estrangeiro, em muitas cidades, onde residem portugueses, é um dia de festa e de afirmação da portugalidade. É incrível a ausência de informação sobre o que devia ser o nosso dia nacional mais importante. Uma breve pesquisa pela internet, devolve-nos apenas alguns textos dispersos e, até esta data, relativos a comemorações de anos anteriores. O exemplo mais flagrante é o do Instituto Camões, que anuncia as comemorações de 1999. E o texto mais recente é um artigo do Correio da Manhã referente a 2001.

           

     A associação de Camões ao Dia de Portugal, deveria transpor-nos para a epopeia cantada nos Lusíadas e fazer-nos reflectir, enquanto povo da Nação que deu novos mundos ao Mundo. Um país pequeno, agigantado na vontade. Um país que também não soube fazer valer o seu contributo para a primeira forma de globalização que existiu. Ainda há poucos dias, uma importante celebridade internacional falava das relações da Europa e Japão, colocando Espanha como interlocutor.

    

     A culpa é nossa, exclusivamente nossa. Porque esquecemos o passado, num processo de autodestruição dos arquivos da memória, que nos leva à perda de identidade. A que não será alheia a descolonização, de certo modo redimida com Timor. O deslumbramento da União Europeia fez-nos pensar que era fácil saltar sobre os muros do atraso. Começamos a pagar cara a utopia. Ganhamos de novo consciência das distâncias. A realidade vai-nos caindo em cima todos os dias, esmagadora.

    

     Andamos tristes só agora ou sempre fomos essência do fado choradinho? Não fomos nem somos. Precisamos apenas de um abanão. De alguém que seja capaz de entender que não se governa com promessas irrealistas e atolando as pessoas em dificuldades crescentes. Que seja capaz de galvanizar a maioria para um projecto claro e viável. Que nos faça sentir que os sacrifícios valem a pena. Que, lendo a História, nos devolva o orgulho. Não já o das fronteiras nem sequer da nacionalidade, que desejo cada vez mais diluídas no projecto europeu, mas aquele que nos distingue pelo Mundo fora. Como mulheres e homens que arregaçam as mangas, sem medos.

    

     No próximo 10 de Junho releiam Os Lusíadas. Mas apenas como um reencontro convosco mesmos. Como quem tem de vencer fantasmas que nunca ousou espantar. Não é uma viagem ao passado, mas uma projecção para o futuro, com a força que vem lá de dentro, assente nos pilares da nossa História. Talvez assim muitos entendam que o caminho está mesmo na frente dos nossos olhos. E ainda temos muitas lições para dar.

 

Lisboa, 13-05-2003

 

Grito do Ipiranga

 

     Mães de Bragança fizeram um abaixo-assinado, que virou caso nacional. Ao que se sabe, os maridos fogem de casa, ofuscados pela beleza e frescura de meninas brasileiras. Claro que as carícias na doce vertente do português transatlântico pagam-se. E, neste caso, arruínam mesmo famílias. Elas, as meninas, apenas vêm à procura de alguns trocados, num trabalhinho sazonal, que lhe permita o regresso e a constituição de um lar, lá nas terras de Vera Cruz. “Bem, se pintar por cá um príncipe encantado, tudo bem, né?”.

    

     Para quem ande meio esquecido, o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral, quando comandava a segunda expedição à Índia, no dia 22 de Abril de 1500. Engano fatal. Diz um texto de então que: “... Também algumas moças, muito moças e gentis, com cabelos muito pretos e compridos a tombar pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e cerradinhas que delas vergonha não pode haver”.

    

     Após alguns anos, tem sido um corrupio entre cá e lá e vice-versa. Por motivações várias, mas sempre no âmbito de um desejável intercâmbio. Nem sempre houve um justo equilíbrio nas trocas, mas, desde há bastantes anos, que a balança de transacções regista no “impor e expor”: telenovelas, artistas, mão-de-obra e investimentos pró brejo, turistas, refugiados (incluindo uma presidente de câmara, recentemente). Não me parece lá muito produtiva esta relação, mas é a que temos. Né?    Valha-nos o Senhor de Matosinhos! Mas até esse parece ter caído agora no esquecimento. Voltas que a política tece, por Assis dizendo.

    

     O Grito do Ipiranga das mães de Bragança, peca por não ter a ver nem com liberdade nem com morte. Tem a ver, sim, com muitas outras coisas da vida, que não se explicam sem palavras e muito menos se resolvem com proibições, em particular da mais velha profissão do Mundo. Até em Monsanto, onde a Câmara de Lisboa varreu as prostitutas matutinas e vespertinas do pulmão da Cidade, mais não conseguiu do que mudá-las de local. E eu, que, pela manhã, já me habituara à sua fiel referência como certeza do percurso para o trabalho, tenho agora que recorrer à frieza dos troncos nus das árvores para não me enganar no caminho.

    

     É assim, a vida. Mas faziam-me pena algumas delas. Pedradas, à chuva, ao frio. Umas, quase mendigando para manter o vício. Outras, quem sabe, apenas para sobreviver. Vendendo o corpo na mata. Sujeitas a todos, a tudo. É a mais velha, mas também a mais triste profissão do Mundo. Como em todos os ramos de comércio, só há venda se houver procura. E aqui nem há marketing que crie necessidades. Vai lá quem quer, de livre vontade. À procura de quê?! Sabem quais são as respostas!

 

Lisboa, 11-05-2003

 

Obrigado Mister Bush

 

     Obrigado Mister Bush por me protegeres dos males do Mundo. Eu, que vivia em permanente ansiedade, sinto-me agora mais seguro, porque aprendi Contigo que os malvados estão por toda a parte e temos de os combater, sem tréguas, onde se acoitam. Fizeste-me entender melhor a globalização. Os seus perigos e também o sentido de justiça sem fronteiras. Agradeço-Te, do fundo do coração, por me teres salvo do facínora do Sadam, que, sem eu saber, estava prestes a lançar um ataque terrorista sobre Lisboa, onde eu vivo com a minha família. Não esqueço, ainda, que foste Tu a convencer o primeiro-ministro do meu país desta ameaça eminente e, assim, salvar, pelo menos, um milhão de portugueses.

           

    Eu sei que não És muito inteligente. Que confundes um bocado a geografia e que a cultura não abunda em Ti, mas toda a gente sabe que ninguém é perfeito. O que Te falta em valores, abunda-Te em caridade. É de Homens assim que o nosso planeta precisa. Fico descansado por Existires e me dares protecção. Sobretudo por viver num Estado que parece pertencer à União Europeia. Seria, pois, pressuposto, que os órgãos desta tentativa supra nacional me confortassem. Mas não, sinto-me como vim ao Mundo, despido de objectivos, nu de esperanças. Tu, com o discernimento das janelas abertas sobre os ecrãs, Soubeste dividir, não para reinar, mas simplesmente para Fazeres vingar o Teu esclarecido sentido de Justiceiro. Não Te elegemos Sherif, mas Soubeste interpretar a nossa súplica. Obrigado!

           

     Passaram duas semanas desde que escrevi as linhas anteriores. Pode-se dizer que é uma crónica a dois tempos, que não chegam para uma valsa. Essa continua lá pelas bandas do Iraque, mas quase a acabar em termos militares. Como se previa, a vitória da coligação concretizou-se. Morreram muitos civis – homens, mulheres e crianças -, jornalistas, soldados. Em nome de uma causa que o não é. Em razão de armas de destruição massiva que não parecem existir. A cena internacional mudou. As Nações Unidas ficaram abaladas. No seu prestígio, na sua utilidade. Há quem diga até que não há Direito Internacional – um americano, por sinal. E deve ter razão, porque se havia deve ter deixado de haver. Sadam é um criminoso, claro. Mas isso não justifica a destruição de um país. Há outras forma de apear ditadores, com ou sem petróleo. A agressão sem mandato da ONU é também um acto criminoso. Ah, mas não havendo Direito Internacional...

    

     Esta valsa, mesmo incompleta, porque lhe falta um tempo – a justificação -, vai fazer rodar o Mundo.            Dos corredores dos interesses aos bancos dos jardins. À fome e degradação. Das boas vontades à hipocrisia da política internacional. Às vítimas das democracias balanceadas pelos poderes económicos. Mas é esse elan que se vai criando, ganhando força, um pouco por todo o lado, que um dia fará cair os falcões e libertar a pomba da paz. Não seremos felizes para todo o sempre, mas talvez possamos saborear a democracia feita à nossa real dimensão.

           

     Lembro-me bem dos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001. E mostrei solidariedade para com o povo americano, condenando aquele hediondo atentado. Mas, Mister Bush, sou também solidário com todos os outros meus semelhantes, quer sejam cristãos, muçulmanos, hindus, budistas ou outra coisa qualquer. Porque são pessoas, seres humanos. Mais do que nunca, obrigado, Pá, por me teres relembrado isso.          

           

Lisboa, 08-04-2003

 

Tou sem paciência

 

     Estou sem paciência nenhuma. Para a política, para a pedofilia, para os frangos cancerígenos, para a guerra contra o Iraque... Contra tudo. Nas tintas mesmo. Não sei o que me deu, mas algum mal deve ser. Depressão, tipo ansiedade fóbica ou apatia geral ou outra maleita qualquer, tanto me faz. Nem me apetece escrever seja o que for, porque as palavras juntadas sem inspiração são maçadoras, não inovam, são caretas. Tenho pena de quem tem de escrever por ofício. Deve ser um martírio escrever por obrigação. Alinhavar, descoser, chulear, bordar, para descobrir um ziguezague insípido e inóspito. O resultado é angustiante, mais a luta contra o tempo.

    

     É, o tempo. O que vivemos, de estranhos contornos, perdendo-se ao sabor já nem sei de quê. Fala-se, fala-se, conjectura-se, contrapõe-se, mas nada se faz. De útil, pelo menos. Depois cansam-se de tanto falar e calam-se. E não se fala mais do assunto. Um novo tema, leia-se nova desgraça, elimina o outro. É uma linha, não modulada, contínua, com o mesmo timbre, embaladora, monótona, degradante. Debate-se, debate-se. Não uns com os outros, mas numa espécie de autismo, onde as palavras tendem apenas a justificar a ainda necessidade de comunicar. Nos meios de comunicação social, claro. A masturbação do ego exige um acto público.

    

     Porque já não há ilhas desertas? Porque não se pode viver apenas de amor numa cabana? Será que os monges do Tibete são felizes? Será que se tivesse uma quinta isolada onde produzisse, naturalmente, tudo o que precisasse para sobreviver sentiria menos ansiedade? E a contribuição autárquica? A Câmara Municipal do sítio não me perdoaria. Mandava o caseiro pagar. Mas aí teria um empregado, contribuições para a Segurança Social... Não dá. Não se pode fugir neste Mundo organizado. Nem fugir nem correr com quem nos condiciona. Mas devia ser possível. Devíamos poder acreditar que a ONU resolveria, de forma civilizada, as disputas, o belicismo. Que cada Estado se submeteria às decisões do Conselho de Segurança. Que as deliberações da sua Assembleia-Geral eram pautadas por um interesse comum. Supremo, porque global, essência de todos e de cada um

    

     Devaneios. Delírios de uma loucura breve, a tornar-se quase doença crónica. Sinais de um tempo de mudanças bruscas. Sinais da ausência de capacidade de absorver e racionalizar, em tempo útil, os factos que nos caem em cima, como uma chuva de meteoritos intermitente, mas com breves intervalos. Vamos remoendo, a reboque dos media e dos interesses instituídos, perdendo o discernimento, embarcando em viagens sem retorno, transformando-nos em ciber-robots, apáticos, obedientes, venerandos mas não atentos. Condescendentes, enfiados nas pantufas e no sofá do nosso comodismo.

    

     Vou à próxima manifestação pela paz! Esbracejar, gritar contra o que for preciso. Pouco me importa contra ou a favor de quem é, desde que seja pela paz e harmonia, para mudar as coisas. Logo nem contra nem a favor de ninguém. É apenas uma questão de me sentir útil, aquém do prazo da minha validade. Interveniente, como antes. Sentir que ainda posso contribuir para mudar o Mundo. Ouvir o som da multidão que comunga comigo um ideal, sentir o cheiro da liberdade, da libertação, no ar. Saber que, mesmo poucos, são semente. Que os poucos crescem, multiplicam-se e passam a agentes da mudança. Entender que a globalização se trouxe novos perigos e dependências também nos dá a oportunidade de alargamos o cordão, o abraço de esperança a todos os recantos do planeta. Depois dessa manifestação vou abancar numa churrasqueira, comer um frango inteiro, com ou sem nitrofurano, beber uma caneca de vinho alentejano e, calmamente, fazer as pazes comigo mesmo e com o Mundo.

 

 Lisboa, 10-03-2003

 

Tamanho da Consciência

 

     Muita gente parece dormir bem com a sua consciência. Pelo menos, a avaliar pelas declarações que fazem à comunicação social. Alguns repetem-no e repisam-no, inculcando, ou tentando inculcar, a ideia de que a sua consciência é, sobre todas as acusações que sobre eles possam impender, o peso e a medida da sua inocência. Logo, tudo o que não importune o fiel equilíbrio dessa íntima balança, passa ao foro de perseguição odiosa, da cabala orquestrada, da vingança sem princípios.

    

     É bom dormir de consciência tranquila. Mas se há quem nem com lexotans, deixe de pensar nos males do Mundo que, num quixotismo desusado, assume como seu, outros, como se usa dizer, “é para o lado em que dormem mais descansados”. Mas, a questão não é essa. É que entre aqueles e estes, há uma diferença abissal. O tamanho da consciência. Dito de outra forma, e com maior propriedade, da afinação das respectivas balanças. Porque não sujeita a aferição e não existindo uma medida padronizada, cada um equilibra-a à sua maneira. Claro que há valores éticos e morais comuns. Mas, sempre subjectivos, moldáveis a vícios secretos e públicas virtudes.

   

     É uma questão recorrente. Por vezes, em razão das mudanças sociais, que cimentam novos valores, outras, porque a Justiça acorda de torpores congénitos ao sistema. Quando se despoletam situações anómalas, entendidas como impacto mediático, propicia-se a reflexão. Coração e razão dividem-se. Discute-se, conjectura-se, profetiza-se. Mas todos concordam numa certeza: Esta é a justiça que queremos; Igual para pobres e ricos, para influentes e anónimos, para fracos e poderosos. Mas também é uma justiça perigosa. Porque condena na praça pública e não reabilita na absolvição. O justo equilíbrio entre a informação e o dever de punir do Estado, enquanto emanação de todos nós, tem de ser repensado.

    

     Não estou a insinuar nada. Muito menos a referir-me a acontecimentos recentes. Não podemos assentar o nosso sistema judiciário em casos de ocasião. A certeza da justiça, embora sempre falível pela acção do homem, tem de ser um valor em si mesmo. Em que possamos todos acreditar, doa a quem doer, seja quem for que esteja a contas com a lei. Lei que, sendo feito para todos, é aplicável a todos, sem excepção. Só quem é inimputável, como um louco, clinicamente reconhecido, não merece condenação. É onde deve funcionar o fiel da balança da consciência, aferido pelo padrão social. Elástico ou não, tem uma zona suficientemente detectável para qualificar a infracção às regras. É quanto nos basta e queremos.

    

     Gente, como aquele homem que, há muitos anos atrás andava nos corredores do Metro do Marquês de Pombal, mostrando o pénis às raparigas que passavam, devia estar no manicómio sem direito a saídas precárias. Valha-lhe a desculpa de que a única coisa que dizia era: “Vê como é pequenina!”. Mas esse era doido do Júlio de Matos. Os perigosos são mesmo os malucos considerados saudáveis. De consciência variável...

Lisboa, 06-02-2003

 

 

2002

 

Dia da Restauração

 

     Com a morte do Cardeal Dom Henrique (1580), que subira ao poder com o desaparecimento de Dom Sebastião em Alcácer Quibir (1578), e estando a coroa portuguesa sem herdeiros directos, Filipe II de Espanha, neto de D. Manuel I, por via materna, reclama o trono de Portugal. Inicia-se o domínio castelhano, que duraria até 1640. No dia 1 de Dezembro desse ano, um grupo de nobres tomou o Paço da Ribeira em Lisboa, depondo o governo espanhol, representado pela Duquesa de Mântua e por D. Miguel de Vasconcelos, e aclamou D. João, Duque de Bragança, como D. João IV Rei de Portugal.

Hino da Restauração

Portugueses, celebremos
O dia da Redenção.
Em que valentes Guerreiros
Nos deram, livre, a Nação.

A Fé dos Campos d’Ourique,
Coragem deu, e Valor
aos Famosos de Quarenta,
que lutaram com Ardor.

P’rá frente! P’rá frente!
Repetir saberemos
As proezas portuguesas.

Avante! Avante!
É a voz que soará triunfal.
Vá avante, Mocidade de Portugal!

 

     O Dia da Restauração, na Cidade da Horta, durante muitos anos, servia de pretexto para alguns jovens da Filarmónica Artista Faialense passarem uma noite especial. Depois do jantar, o ponto de encontro era a sede da banda. Cavaqueira, umas futeboladas no relvado da Torre do Relógio e o repouso com mais cavaqueira. A noite ia passando, com umas buchas trazidas de casa e algumas bebidas. Treinava-se o hino, que alguns acompanhavam em cantoria: “Ó ti Zé das barbas brancas...”. Nunca entendi esta versão, mas que cabia na pauta, lá isso não se podia negar. Demonstrava também quão afastados estávamos da História, apesar de sabermos o significado da comemoração. Para nós era mais o símbolo da nossa própria libertação. O único dia do ano com autorização paterna sem hora estabelecida.

 

     Os mais velhos iam chegando, completando o naipe de instrumentos por volta das cinco da manhã. Percorriam-se as ruas da Cidade até ao Largo do Infante e voltava-se pelo mesmo caminho, tocando intervaladamente sempre o mesmo. As pessoas acorriam às janelas, umas saudando outras estremunhadas. Nalguns casos ofereciam mesmo uns figos passados e angelica ou aguardente. Alguns de nós, em que me incluía, íamos munidos de um rolo de fita adesiva, colando algumas campainhas pelo percurso. Uma brincadeira sem muita piada para quem queria dormir e já vira perturbado o silêncio da noite Chegávamos a casa já com o sol acordado, prontos para dormir até ao meio-dia. Cansados, sonolentos. Tradição cumprida.

 

     Hoje é mais um dia perdido da memória colectiva. Como alguns outros que contribuíam para a identidade que se vai esbatendo. A questão é que já não sei se vale a pena manter estes feriados. Só dizem por ser um dia de descanso, nada mais. Se o passado releva para o futuro, talvez haja memórias que mais vale a pena esquecer. Hoje, diluir as diferenças pode ser mais importante que afirmar velhos pergaminhos. Confesso que fico dividido. Mas era um debate que se impunha, sem preconceitos e xenofobias, sereno, com os olhos voltados para amanhã. Conscientes do que, afinal, queremos ser.

 

Lisboa, 01-12-2002

 

Teoria do Barricamento

 

     Alguém que se queira barricar tem de ter, necessariamente, uma barrica. Não é necessário uma pipa, pode ser mesmo um quinto. O sucedâneo simbólico depende da imaginação de cada um. É necessário que providencie também água e alguma comida, enlatada ou empacotada e de fácil digestão, de acordo com o tempo previsível da manifestação. Uma lamparina para aquecer um púcaro de café pode ser decisivo para se manter em estado de alerta. Uns maços extra de cigarros, para quem fuma, mantêm a descontracção. Estando frio, é aconselhável uma garrafa de aguardente ou, para os mais snobs, de vodka. Romances absorventes ou revistas ilustradas, com casos quentes e bem picantes, podem ajudar a passar o tempo. Um telemóvel, com várias baterias de reserva, é fundamental. Bem como um aparelho de rádio e de televisão portáteis, com pilhas suplementares. Claro, e vestir a roupa e ter o equipamento apropriados a cada situação. Tudo o que deva ser invisível a olho nu antes da operação, deve caber e ser bem acondicionado num saco a tiracolo ou numa pasta, de acordo com o perfil adoptado.

           

     O barricando deve estudar minuciosamente as razões da revolta que servirá de fundamento ao acto público de estreia. Convincentes, melodramáticas, com origens obscuras, mas sempre assentes em injustiças gritantes. Deverá treinar a fala e os gestos, de modo a transmitir o sentimento e atitude de um cidadão normal, incomodado com a opção, mas sem outra saída possível. Um quê de loucura ou de perturbação mental, melhor dizendo, é essencial para a criação de um clima de suspense. Há que escolher o local, dia e hora adequados para um impacto merecedor da atenção dos media e que evite um desfecho antecipado. É necessário criar a convicção às polícias é à opinião pública da solidez do barricamento.

           

     Quem se barrica sozinho não poderá esperar grande visibilidade. A não ser que o faça nas instalações de um órgão de comunicação social ou ameace deflagrar uma bomba, a todo o momento, num qualquer edifício conhecido. Mas, neste caso, o barricado revela primários instintos suicidas, pouco apreciados pela opinião pública. O mais drástico e com maior impacto é quando se junta um elemento ainda mais forte: o sequestro. Umas quantas pessoas, coagidas, inocentes. Amarradas, amordaçadas, com a morte apontada à cabeça. Moeda de troca para negociar, ganhar tempo, manter o interesse das estações de rádio e televisão. Oportunidades de entrevista, de explicação das razões, terminando cada conversa com enfoque nos reféns. Estão bem e nada lhe acontecerá. Revela o lado humano do sequestrador. Obrigado a um acto de loucura, que não queria nem nunca fora pensado. Encurralado, só quer uma saída digna, humana, justa.

           

     As claques formam-se. Posicionam-se, rodeando o local. Militam contra e a favor. O barricado sequestrador pode medir as audiências, doseando a informação prestada a seu favor, sobretudo nos directos. Nunca deverá aparecer de pistola na mão, a não ser em momentos críticos e sempre com ela apontada à sua própria cabeça, como alternativa a ter que beliscar um cabelo que seja dos reféns. Desesperado, prefere o suicido ao assassinato. Nunca fez mal a ninguém, nem o fará agora. Só quer... Tudo o que tem vindo a dizer e etc.. Impasse e perplexidade. A claque do “Sim” aumenta. Vai convertendo os mais irredutíveis. Os psicólogos, convidados pelos media, traçam perfis, sem conclusões. Tudo pode acontecer. Talvez se suicide, talvez mate algum refém. As polícias nada revelam, mas vão apertando o cerco. O alvo, se consciente e bem preparado, sabe.

           

     Anuncia, então, a libertação de uma mulher, mais combalida. Ela sai, recusando falar. Logo a seguir outra... e outra. Fica um homem, chefe de qualquer coisa, não importa, mas importante no momento. O barricado e sequestrador, já quase expurgado deste último epíteto, dá a sua última entrevista, reafirmando o essencial das suas motivações. Num acto de lucidez, antecipadamente programado, decide a sua entrega, com uma única condição: perante o público que rodeia o edifício, levando consigo até à rua o único refém. A última fase do seu comportamento amoleceu ainda mais o lado criminoso do seu acto. Psicólogos e até as polícias acreditam que foi sincero. O público está incondicionalmente ao seu lado. Todos se preparam para a apoteose final.

           

     Com o refém à na sua frente, abraçado pelo pescoço e a pistola colada nas suas costas, rodando em conjunto para ficar de frente para os polícias que já se encontram por toda a parte, entra no elevador. Desce até ao átrio do edifício. Sai do mesmo modo, evitando um tiro furtivo. Já na porta principal, levanta um braço, com os dedos em “V”. A multidão aplaude, entusiasma-se, derruba as barreiras de segurança. As polícias ficam impotentes. O ex-barricado confunde-se com a populaça. Retira dos bolsos das calças um boné e uns óculos escuros e coloca-os, desaparecendo sem deixar rasto.

    

     Os últimos noticiários relatam os factos, sem muitas considerações. As polícias refugiaram-se num mutismo de rolar cabeças, sem pouparem a inconsequente atitude dos cidadãos voyeurs. O único psicólogo que resistiu disse que, “tal como havia afirmado anteriormente, se tratava de um profissional altamente qualificado, pelo que não o surpreendia o desfecho da situação”. O pivot do “Especial Informação”, já cansado de cinco horas seguidas de trabalho, não teve pachorra nem ânimo para o contrariar, fechando o directo com uma simples frase: “Afinal, bem vistas as coisas, não se passou nada!”. 

 

Lisboa, 28-11-2002

 

Camões, o chato

 

     “As armas e os barões assinalados / Que da Ocidental praia Lusitana, / Por mares nunca dantes navegados / Passaram ainda além... / Os muros de Marrocos e Trudante, / A minha já estimada e leda Musa / Fico que em todo o Mundo de vós cante, / De sorte que Alexandro em vós se veja, / Sem à dita de Aquiles ter enveja.”.

    

     Custa lá decorar um poemazinho destes? Bem sei que é o princípio e fim de dez cantos de um livro enorme e molhado por muitos naufrágios, mas nada impede que simplifiquemos as coisas, muito à nossa maneira. É que mal começamos já temos o objectivo alcançado, sem cuidar do meio e dos meios, dos entretantos. Depois, recusamo-nos a voltar ao princípio para arrepiar e retomar caminhos. Para quê perder tempo com prosas e versos? Com visões de médio e longo prazo?

    

     De entre os muitos feriados nacionais, há um que designaram de Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas. De Portugal e das Comunidades é feliz a expressão. De Camões, esse chato, não tem sentido. Há uns anos, alguém (que muito respeito) propôs mudar o Hino Nacional. Eu proponho que esqueçamos Camões. Porque este país deixou de ser de poetas. Ninguém consegue, hoje em dia, ver metáforas na letra da Nacional. Tem lá algum jeito imaginar que marchamos contra canhões transfigurados de desafios? Tem algum sentido revermo-nos no passado?

           

     Camões foi, e é ainda, um grande chato. Falou de feitos que não existiram. Glorificou um povo que nada fez. E em Fez, perdeu-se no nevoeiro. Escreveu de mais. E uma epopeia a que chamou Lusíadas. Perdeu o seu tempo. Quem quer saber agora de uma história de dar novos mundos ao mundo quando nem sequer temos navios para a marinha portuguesa? Quem quer saber de mares e de novos horizontes quando temos mesmo aqui, tão perto, uma união europeia? Que manda, comanda (e descomanda), atrai e faz sonhar? Razão tinha, afinal, o Velho do Restelo. Vivemos de medos, ancestrais.

    

     Camões pode ser um grande chato, mas gosto dele. Deu identidade ao povo a que pertenço. Faz-nos sentir portugueses. Apenas isso. E basta. Este orgulho de um pequeno povo que foi grande. E é grande ainda, só que alguns não sabem. Voltaram costas à história. Perderam o rumo e a direcção dos ventos e marés. Formaram marujos de terra. Limitados. Quebraram o elo que perpassa entre passado e futuro, determinando o presente.

           

     Peço desculpa a quem compete zelar pelo sistema, mas Camões não é chato. Chatos são quem o retira do sistema. Neste caso, do sistema de ensino, pedra toque do que queremos e podemos ainda ser.

 

Lisboa, 24-11-2002

 

Publicidade

 

     Gosto de ver e ouvir bons spots publicitários. Apenas pelo prazer da imagem, do som ou do texto. De resto pouca mossa me faz. Devo ser daqueles não influenciáveis o suficiente para ficarem com água na boca e desatar a correr para comprar. Mesmo nas compras da semana, sei exactamente o que preciso e fico pior que uma barata, bêbeda de insecticida, quando mudam as coisas do seu local habitual. Ou seja, comigo não levam nada. Só se eu andar mesmo à procura de um produto específico, que de repente me apareça em qualquer suporte.

           

     Mas há publicidade a que não sou indiferente, que mexe comigo, mas pela negativa. São aqueles anúncios estúpidos que estão na moda. Lembro-me de um do Natal passado que chegava ao cúmulo de vandalizar um livro para meter lá dentro, como um suprema surpresa, um telemóvel. Nem foi tanto a atitude anti cultural, mas mais a falta de inteligência. Santa ignorância! Depois, há os dos bancos, que, a avaliar pela chacota, me preocupam quanto à idoneidade da instituição e, pior, ao destino dos meus ricos tostões. Cêntimos, queria eu dizer. E há mais, de automóveis, de casas, quase tudo. Alguns até podem ter piada, mas não para vender um produto que se pretenda de qualidade seleccionada e selectiva.

           

     Quando falo disto, lembro-me sempre de uma viagem a Espanha, que ganhei em tempos. Convidado a apresentar-me no estabelecimento, que não me queria vender nada, lá fui movido pela curiosidade embora ciente do princípio que ninguém dá nada a ninguém sem o devido troco. Conversa. Vi logo que aquilo tinha truque. Começaram por falar de saúde e da importância de dormir bem. Mediram-me a tensão. Muito alta. Pudera, já estava a ferver. Depois, numa outra sala, apresentaram-me o colchão maravilha. Deitei-me, com direito a uma massagem eléctrica. Estava farto. Queria vir embora, mas a boa educação ia cedendo à carraça da apresentadora. Sim, porque a vendedora era outra.

           

     Mediram-me de novo a tensão. Muito melhor, embora ainda um pouco alta. O que um colchão maravilha faz em pouco minutos... Como, se eu ainda fervia mais? E lá veio a vendedora, convencida que eram favas contadas. Uma luta de resistência mútua. Como se nos separassem apenas umas boas centenas de contos. Por fim, já só dizia, em desespero de causa: “Pode ter toda a razão, mas não quero comprar.”. “ Mas... “. “Não!”. E andámos nisto quase meia hora. Levantei-me. Estava furibundo. Ela, felizmente, entendeu, porque eu estava a chegar ao ponto de esquecer as boas maneiras e ceder a algumas tentações pouco civilizadas. E não é que me deram mesmo o prémio?! Sem ter comprado nada, perante o olhar capaz de me matar da vendedora.

    

     Saí muito mais calmo, contente comigo mesmo, por ter vencido. Queria ter medido a tensão nessa altura. Mas que se lixasse, tinha ganho uma viagem de três dias a Espanha, onde só fora duas vezes e junto da fronteira. Durou pouco a minha felicidade. Lendo a papeleta, verifiquei que, em dois longos períodos ficava por conta da organização que me levaria a visitar locais específicos de compras. Isto é, compra-se o colchão e ainda tem de se comprar mais. Não se vende, mas há mais para vender. Claro que ninguém é obrigado a comprar nada e já o havia demonstrado. Mas, passar de novo por uma chatice daquelas era impensável. Não terminei a leitura, peguei no package e, sem ver mais nada, deitei-o no lixo.

 

Lisboa, 19-11-2002

 

Universos dimensionáveis

 

     Depois de muito procurar, encontrei o amor da minha vida. Foi amor à primeira vista. Olhei para ele e, de imediato, soube que era o homem que sempre tinha idealizado. De entre todas as mulheres do Mundo, esta é, de certeza, a única que me poderá fazer feliz. É o homem certo para mim. É a mulher da minha vida.

           

     Frase feitas, entre muitas outras, em que se acredita. O processo de casamento, com ou sem papel, assenta em princípios, mais ou menos rígidos. Que pouco variaram ao longo da História. Cada um, em determinado momento da vida, acha que encontrou, finalmente, a cara-metade, mesmo que repetente no ajuntamento dos trapos. É como se dominassem um universo global, onde fosse possível comparar todas as mulheres ou homens, seleccionado, por exclusão de partes, o parceiro mais adequado.

    

     Pura ilusão. Geográfica, em particular do conceito de proximidade. Homem ou mulher não conhecem, normalmente, mais do que alguns espécimes do sexo oposto. O universo de escolha é limitado aos conhecimentos que os círculos de vizinhança, amigos, estudo e trabalho, lhe proporcionam. Os tabus condicionam quer a multiplicidade de namorados quer a apetência pela experimentação. As circunstâncias são determinantes. O Big Brother é um bom exemplo. A idade, traduzida num certo desespero, outro. Para os homens, o divórcio, sobretudo quando abandonados, é quase afirmação, talvez mais confissão por não saberem viver sozinhos, sem a presença da dona de casa.

    

     É uma questão de dimensionamento de universos. Moldados à medida de cada um. Na verdade, e nesta acepção, universo é o que rodeia e envolve, à vista desarmada. Nele se movem e escolhem, com as referências em vigor no meio. Umas vezes funciona, outras não. Em muitos casos, compensa-se o tédio com a acomodação. Esquece-se o amor eterno e os votos de unicidade, pluralizando. E assim vivem, felizes e contentes, redimensionado, ao sabor das contingências, o universo da vida.

  

Lisboa, 18-11-2002

 

Sai De Baixo

 

     O “Sai de Baixo”, programa transmitido pela GNT, através da televisão por cabo, é uma das pérolas do humor brasileiro, pelo menos do que nos é dado ver em Portugal. É a minha opinião, claro. Como também acho que uma imitação fabricada por cá, não tem mesmo esse pai. É a mania de copiar tudo. Como se os portugueses, desde há uns anos, tivessem embrutecido de vez. Nem uma proposta de qualidade deve ter sido apresentada às estações televisivas. Desesperadas, as três empresas de sinal aberto recorrem a programas estrangeiros, de audiência pretensamente garantida. Não devem ficar baratos e, na maior parte dos casos, não quero acreditar que suplantem a criatividade local. Bem, sejamos justos. Os bonecos da “Contra Informação” têm alguma piada. Mas são mais corrosivos para os políticos que as análises da comunicação social mais desabrida. Não sei nem sequer imagino até que ponto contribuem para piorar ainda mais a imagem dos homens em quem devíamos depositar as nossas esperanças. Mas a verdade é que também um país, já de si triste, que não ri de si mesmo, nem com doses suplementares de anti depressivos evita a angústia em que cada vez mais vai mergulhando.

           

     Voltando ao “Sai de Baixo”, num dos últimos episódios que vi, comprava-se um deputado federal como animal de estimação. Saindo de um caixote, o homem comportava-se como um cão caseiro, intervalando os latidos, lambidelas e mijas, com discursos da pior demagogia. A imagem que resultava, pelo menos como a apreendi, colocava os políticos brasileiros mesmo abaixo de cão. Se alguém se lembrasse de fazer isto em Portugal, e se alguma estação de televisão condescendesse em transmitir, tenho certeza que cairia o Carmo e a Trindade. E com alguma razão, diga-se, já que seria degradante ver o que vai restando do prestígio da instituição parlamentar aviltado dessa forma. Se o “Contra Informação” já deve causar muitos engulhos, imagine-se uma tal comparação. Só que a culpa é... Ia dizer dos políticos que temos, o que é uma realidade. Mas não esqueçamos que eles são também o reflexo da sociedade donde emanam Mas, porque são representantes do povo, deste que temos, de todos fazemos parte, embora, por vezes, se pretenda segmentá-lo em quase castas, como a “sociedade civil”, que ainda ninguém me conseguiu explicar... Onde é que ia?... Ah, queria dizer que os políticos têm de ter a noção das suas responsabilidades.

           

     Retive que o Professor Freitas de Amaral, há algum tempo atrás, perante uma Comissão da Assembleia da República, insinuou que havia diminuído a qualidade dos deputados, por comparação com os parlamentares eleitos após o 25 de Abril. Tentou apenas sugerir o que todos sabemos, mas nem sempre temos a coragem de afirmar. Espelho ou não da sociedade, os nossos políticos são, na generalidade, maus. Não estão preparados, não têm cultura. Sobretudo, falta-lhes o essencial. A consciência de missão. Eleitos para servir o povo. Esquecem. Perdem-se em confrontos partidários que os eleitores não entendem. Agridem-se verbalmente, fazem birras. Perdem tempo, em vez de decidir. E o país avança aos solavancos, quando não aos recuos. Um novo governo muda só por mudar. Tudo o que foi feito está mal, simplesmente porque realizado por outro partido. Não há acordo nas questões essenciais. Não há consenso nacional. Faz-se, desfaz-se e volta-se a fazer de outro modo. As leis proliferam, num emaranhado por vezes inteligível. As rectificações sucedem-se. Nem os juristas mais especializados conseguem abarcar uma área delimitada. O cidadão comum desconhece. Mas lei é lei (Dura lex sed lex). Percebe quando o multam, entende quando paga. E vota, na esperança de tudo isto mudar. Ou já nem vota. Porque sabe que tudo vai ficar na mesma. Qualquer dia temos os políticos a elegerem-se a si mesmos. Numa nova espécie de democracia em que nem será necessário dar satisfações ao povo.

           

     Ena, embalei... Desculpem! Só queria falar do “Sai de Baixo”. Do bom humor. Do humor que é preciso para nos fazer sair desta tristeza mórbida. Do que deviam ter os nossos políticos. Rindo, mas fazendo. Mudando. Dando esperança. Acabando com esta mentalidade estupidificante dos “símbolos” e do “status”. Parafraseando os nossos irmãos do outro lado do Atlântico: “Sai debaixo senão te piso!”.

 

Lisboa, 07-11-2002

 

Escola para Pais

 

Porque não há uma escola para pais? Se os progenitores são o elemento mais importante da educação das crianças e dos jovens deviam ter um diploma certificador da sua capacidade formadora. Requisito essencial e prévio ao acto da concepção.

 

Claro que alguns, mais avisados ou sentindo o peso do Mundo nas costas - sem que ninguém lhe houvesse encomendado o fardo -, diria que era necessário ir mais longe. Os potenciais geradores de um ser humano deveriam ter ainda umas quantas qualidades, como a idoneidade moral e o adequado suporte económico. Poderiam até exigir a certidão das Finanças como bom pagador de impostos.  Indo a extremos – o que não seria impensável -, limitar-se-ia a procriação a uma análise exaustiva e demorada dos genes, garantindo que os nascituros não iriam padecer de qualquer maleita, física ou psíquica, evitando custos desnecessários para a comunidade. Assegurando o contributo válido para a sociedade.

 

A inteligência seria, assim, filtrada em três graus: prática, conceptiva e gestionária. Normalizando-se o “QI” de acordo com a pirâmide das necessidades colectivas. Fácil e eficaz. Da eficiência trataria a formação, activa e orientada, desde o berço até ao ingresso no mercado de trabalho. Simples e produtivo. Poupando tempo e dinheiro. Os criativos teriam um papel meramente instrumental. Parametrizado, em cada momento, ao ritmo da evolução planeada. Não fosse dar-se o caso de criarem para além do programado e corromperem o status quo estabelecido. Nesta sociedade, os escritores, criativos especializados em trabalhar as palavras, seriam escribas, a mando da orientação geral. Caber-lhe-ia, invocando musas e todas as divindades, conhecidas e imaginárias, incentivar os cidadãos à produtividade e à coesão social. A poesia, elemento menor neste contexto, viveria de quadras apelativas. Repentismos, estudados e aprovados, para manter o espírito de cada grupo, pretensamente diferenciados para acirrar e competitividade. Com o mesmo fim: o resultado bruto, final. A pintura, a escultura, a fotografia enalteceriam os gestos, os corpos em esforço, os rostos suados, os grandes líderes bem amados.

 

Sociedade quase perfeita, apenas porque o absoluto não existe. De gente predestinada, amorfa. Uma sociedade de autómatos, controlada. Já lemos esta utopia. Sabemos de experiências falhadas, assentes em pressupostos próximos. Continuamos, em nome de muitos princípios e razões, a contrapor inutilidades. Porque não somos capazes de encontrar um modelo organizativo que nos satisfaça. Criando um justo equilíbrio entre o colectivo e o individual. Diminuindo o fosso entre a pobreza e a riqueza, estupidamente distantes. Sonho. Efeito imitação. O bem-estar a reboque. A própria felicidade – que nunca ninguém definiu cabalmente -, vive na insatisfação de contraponto aos dias mais amargurados. Somos assim. Infelizes, quando o dizemos. Felizes, quando o repetimos para nós mesmos. Sem saber muito bem porquê, apenas porque, no momento, sentimos a emoção, enfatizamos a semântica das palavras.

 

Que tem tudo isto a ver com uma escola para pais? Tudo. Enquanto não nos encontrarmos, não podemos transmitir. Nada. Nem conhecimentos, nem experiência válida. Não podemos educar. Só formados podemos formar. Só educados podemos educar. Em valores, princípios, mas, sobretudo, numa estratégia de vida que se encaixe na evolução da sociedade que nos pertence. Dar à luz, pôr no Mundo, parir, como quiserem, é, antes de mais, um acto de amor. Mas, sobretudo, de responsabilidade. Partilhada, colectiva. Orientada. Não, necessariamente, pela ambição profissional. Mas pelo incentivo, apoio e protecção do Estado. Os pais precisam de ser paramédicos, psicólogos, professores... A escola não os substitui, mas acrescenta-os. Deve mesmo suprir as eventuais, e muitas, carências. E não pode demitir-se deste papel. Mas, antes de complementar, deve formar e preparar. Mães, pais. Dar conhecimento, fazer entender, dispensar experiência adquirida. Sem tabus, sem constrangimentos. De forma planeada, integrada, abrangente. É esta escola, não só académica, mas também de vida, que pode fazer toda a diferença. Criando, recriando. Fazendo acreditar que vale a pena viver. Procriar. Dar esperança. Sentir que cada criança que nasce tem sentido e destino. Que pode mudar, transformar. O Mundo, mais próximo, global, o que temos. Nosso, agora. Amanhã, dos nossos filhos. Que queremos melhor, mais justo, mais... O que sonhamos para eles. Sonhem e mudem as coisas! 

 

Lisboa, 02-11-2002

 

Cultura q. b.

 

     José Leite de Vasconcelos disse a José Hermano Saraiva, em 1940, que quanto mais se estuda mais dúvidas se tem. O maior comunicador da actualidade acrescentou, agora, que quanto mais se lê e investiga, maior é a noção da nossa ignorância. Já Sócrates, o filósofo grego (470-399 a.C.), afirmara que sabia apenas que nada sabia, o que, logicamente, leva a concluir que pelo menos sabia que não sabia. Afinal, sempre tinha uma certeza.

 

     Levando este raciocínio um pouco mais longe, poder-se-á dizer que a ignorância só existe quando confrontada com o conhecimento. Só se é deveras ignorante se tivermos a veleidade de saber muito. Sabendo pouco, a ignorância passa quase despercebida. É como a perspectiva com que se encara uma pessoa em termos médicos. Doente é apenas aquele a quem são diagnosticadas doenças. Até aí, presume-se o indivíduo saudável. E quando se fina, dispensando-se a autópsia, morre de velhice ou de causa desconhecida.

 

     Nesta altura do discurso, pode também concluir-se que a ignorância não é, necessariamente, a condição do ignorante. Alguns, não sendo ignorantes, aceitam a sua ignorância. Outros, nem sabendo o que é ignorância, ofendem-se com o epíteto. É uma questão cultural. O saber não ocupa lugar, mas faz a diferença.

 

     A felicidade comporta múltiplos factores, ordenados e doseados individualmente. Para quem sobrevive, esta questão é estéril. Não ocupa os seus pensamentos. Dir-se-ia, então que a atitude cultural está ligada a um certo desafogo económico, que permite, pelo menos, acesso aos meios de comunicação social e ao sistema oficial de ensino. Mas a este todos têm acesso,

 obrigatoriamente. Mas não chega. Aprende-se, esquece-se, como a língua que não se pratica. E cultura também custa, tem preço. E que tem a ver com felicidade, se “amor e um cabana” bastam?

 

     Compliquei e não sei como sair daqui. Talvez que felicidade tenha a ver com ignorância e infelicidade com saber demais. Ou poderá ser ao contrário? Confesso que dei uma passo maior que as minhas pernas. Seja como for, fico com a sensação de que a maior parte dos ignorantes têm uma boa desculpa, porque, estatisticamente, são o espelho do país. E a questão é de valores. Quando se inverte a pirâmide das necessidades, não admira ver os livros trocados por bens supérfluos e sem utilidade. A sociedade de consumo, mais do que criar apetências, molda, transforma, despe.

 

     Pensar é apenas privilégio de alguns, que pregam no deserto. Viver é, cada vez mais, um acto de imitação, banalizado por inutilidades. Relacionar com os outros é, a maior parte das vezes, ditame de interesses imediatos. Na verdade, bem vestidos, à moda, andamos despidos da nossa própria pele.

 

Lisboa, 12-10-2002

 

Manipulação

 

     Detesto que discutam as minhas ideias, mas adoro discutir as ideias dos outros. Não é por nada, mas apenas porque estrategicamente aconselhável. Impondo as nossas ideias como verdades absolutas, resta mais espaço para partilhar as dos outros, dando-lhes alguns retoques da nossa larva, até as transformar no que realmente pensamos. Aumentamos, assim, o nosso património ideológico, propagando-o ao mesmo tempo. Claro que nem sempre é fácil convencer os outros e muito menos levá-los a aceitar as nossas ideias. O fundamental é fazê-los pensar que as ideias que lhes incutimos são criação própria, fruto de mentes privilegiadas.

 

Não se combatem as ideias com que não concordamos. Aceitam-se sem discussão. Dando razão ao interlocutor, minamos, aos poucos, o raciocínio. As incertezas surgem e ele próprio, sem se aperceber, tenta reafirmar a sua tese, buscando outros caminhos. Acaba por reformulá-la, triunfante com as novas conclusões, sem refutação possível. Só que a ideia acabada está longe da inicial. Agora é a nossa, sugerida na concordância discordante deste processo dinâmico de comunicação enviesada. E os mais teimosos e convencidos acabam por ser as presas mais fáceis.

 

É a teoria da manipulação. Usa-se na política, no marketing, na vida quotidiana. A sentimental é, por vezes, violenta. Leva a pender apenas para um dos lados, com uma ou outra concessão, anulando o previsível argumento-queixa: “Acabo sempre por fazer o que tu queres!”. Um deles tem uma personalidade forte, diz-se. O que equivale a não aceitar como viável uma relação de personalidades dominantes. Não é verdadeira a afirmação, tal como não é possível a submissão total. O facto de serem observáveis estes tipos de relação, não leva a aceitá-los como regra.

 

O manipulador, nalguns casos, nem sabe que o é. Tece a argumentação inconscientemente, mantendo no centro da questão que aceita (ou deve aceitar) a ideia do outro, até porque é razoável, lógica ou exprime um desejo legítimo e realizável. Mas, porque não lhe convém ou, simplesmente, não lhe apetece, sem destruir as razões, substitui a vontade alheia por sucedâneos, com direito a escolha, fazendo assim crer que a decisão tomada foi livre e espontânea, de entre um leque de opções, atenciosamente apenas sugeridas.

 

Manipular é quase uma arte. Desde a pura vigarice até ao encantamento pessoal. Exige uma boa dose de imaginação e, sobretudo, de autocontrolo. O melhor manipulador é o que se convence de que os resultados a obter não são em razão da sua própria vontade, mas em função do que julga melhor para a outra parte. É uma espécie de paternalismo, que ainda apresenta duas vantagens: o manipulador fica bem consigo mesmo e o manipulado grato pelo cuidado.

 

É por isso que não gosto que discutam as minhas ideias. Assim, vou sentido que, boas ou más, sempre são minhas. Por enquanto...

  

Lisboa, 08-10-2002

 

Os Sonhos

 

     O meu nome é Ludovico Pensador. Pensador não é apelido, apenas um cognome para a minha compulsiva mania de pensar sobre tudo. O meu grande problema é ser distraído, não sendo raro despertar com a buzina dos automóveis, ao atravessar uma rua, ou com uma valente cabeçada numa porta de vidro. É quando estou ainda mais absorto nos meus pensamentos. Gosto, sobretudo, de observar pormenores e de tentar compreender a razão das coisas banais. Não tenho cursos, nem qualquer estatuto profissional, apenas digo o que concluo da minha observação, empírica e sem pretensões científicas.

           

     Falar de sonhos não será propriamente uma matéria vulgar para muitos, mas para mim não passam de uma mera banalidade. Se pesquisarem na Internet, encontrarão diversos sites que explicam as razões e a interpretação dos sonhos e até como tomar nota do que sonhamos, se deles nos quisermos lembrar posteriormente, porque, como todos sabem, geralmente esquecemos o que ocorreu na nossa cabeça durante o sono.

           

     Há muitas teorias sobre os sonhos e mesmo quem ganhe a vida a tentar dar-lhes significados concretos. Por exemplo, que os sonhos são motivados por questões do passado, que nos marcaram, do presente, que nos influenciam de um modo mais ou menos intenso, e do futuro, quanto ao que nos poderá suceder. O sonho recorrente é, nalguns casos, associado a algo que pode mesmo acontecer, como uma premonição, mas isso não está provado, caindo no campo da parapsicologia. E, provavelmente, apenas têm a ver com a recorrência dos nossos próprios problemas e medos.

           

     Se comparássemos o nosso cérebro ao processador dos nossos computadores pessoais, poder-se-ia dizer, grosso modo, que, por vezes, ele realiza operações que fogem ao nosso controlo, sem qualquer ordem de comando ou estímulo exterior. Mas há uma razão objectiva para o computador, resultado da programação ou da informação introduzida. Para o cérebro, a objectividade quase sempre se perde porque não estamos atentos nem racionalizamos permanentemente os inputs que constantemente nos chegam.

           

     O nosso cérebro sonha sempre em razão do presente, mesmo quando as motivações sejam do passado ou projectadas no futuro. Porque reavivámos as marcas ou receámos o amanhã, com as incógnitas que nos afligem. O mais usual é que o sonho tenha a ver com factos do dia, com aquilo que nos aconteceu. Uma situação qualquer, até um programa de televisão, podem desencadear um sonho com diversos graus, inócuo, alegre ou pesadelo, consoante a impressão causada e a satisfação ou carência e receio que possamos experimentar. Um exemplo de pesadelo é sonhar com ladrões quando se fica sozinho, sobretudo após um filme com violência física e, particularmente, psicológica.

    

     O sonho não reproduz ou reconstitui a motivação, ganha autonomia, por isso, numa primeira análise, parece não se relacionar com as origens. É como se o nosso cérebro produzisse o seu próprio filme, numa adaptação livre do livro ou mesmo do guião. Há quem consiga manipular o enredo, quando o rumo dos acontecimentos chega a certos limites, retomando cenas e encenando diferentes desfechos. De capturado a captor, de vítima a agressor, de vilão a herói. Há também quem consiga evitar o sonho indesejável, predispondo-se a um sonho programado, uma história sempre retomada ao deitar, mais ou menos do episódio da noite anterior, com as improvisações de ocasião, eventualmente enriquecida pelo dia. Na verdade, também para sonhar é preciso alguma imaginação.

 

Lisboa, 24-09-2002

 

Cultura de Desgraça

 

     Sempre fomos um pouco para o “coitado desgraçadinho”. O fado, no seu ritual mais fechado, que alguns apenas o entendem assim, mas não tem de ser. O sentimento de que o que é nacional não presta, a não ser que seja comprado em Paris, como o outro que descobriu que o fato que acabara de adquirir era made in Portugal. É a literatura e a música, que só é boa quando importada. Basta ouvir a rádio, em qualquer estação, e contabilizar, apesar da lei em vigor. E alguém já viu uma miúda que seja, daquelas esganiçadas e com risinhos histéricos, a desmaiar perante músicos portugueses? Algum escritor português teve tiragem igual ou superior aos mais badalados escribas estrangeiros? O Saramago? Não sei, talvez, mas não fosse ele prémio Nobel... e até vive em Espanha. D. Quixote! É o que alguns são, lutando contra estas marés de mares esquecidos. Até a história, as epopeias morreram nas docas do Tejo. Os Vikings! Esses sim, toda a gente sabe que tinham elmos com cornos e barcos muita giros! Caravelas da desgraça...

           

     Mas a desgraça é mesmo nacional. Vive, dissemina-se e corrompe tudo e todos. Está na política, na desgraçada da economia, no país de tanga, nos políticos desgraçadinhos, cujo único dom é mesmo desgraçar o que ainda estava mais ou menos engraçado e sãozinho. Nos lobbys, que tentam influenciar ao sabor dos seus interesses, esquecendo que o todo também lhes pode dar jeito.Está, já não tanto na religião, mas mais no futebol, antídoto dos males sociais e aproximador de classes, porque aí anda tudo ao molhe e, de facto, evoluiu da cavaqueira de taberna para quase sarau cultural. Quero lá saber do Jardel e dos problemas íntimos!

 

     Está nos reality shows, porque o zé-ninguém passa a vedeta e sublima as frustrações. Coitadinho do Zé... Os humildes também podem ser alguém. Mas o Zé continua ninguém e outros, que até poderiam ser alguém, não tiveram alguma oportunidade. Mas a imagem passa. É fácil singrar na vida, basta ter sorte. É isso: ou sorte ou desgraça!

           

     São os touros de barrancos, que viram caso nacional, uma vez por ano. E é quando se lembram que, por acaso, há leis que se fazem mas que não são para cumprir, como se fosse a única. Ou será, talvez, para fazer esquecer outras, alheadas da realidade ou aprovadas apenas para contentar algumas vontades? E quando não se cumpre a lei, com a conivência das autoridades... Está tudo dito! Depois não se queixem.

           

     São os cãezinhos que têm nome de gente, mas gente que ignora as muitas gentes que precisam, às vezes apenas de um simples carinho. É o recurso ao crédito para chatear o vizinho ou fazer inveja ao palerma do amigo, armado em Yupie de Alcântara ou da 24 de Junho. São os VIPs ambulantes, cabeças de galinha que depenicaram euros em vez de milho, quando a Bolsa ainda dava ou que compraram o Jaguar com parte do financiamento do negócio que irá falir e pôr no desemprego uns desgraçados com contrato a prazo, se é que já não estão apostados noutro investimento, com ou sem fundos europeus, que ajudará, inquestionavelmente, a aproximar Portugal da Europa. Empresários desgraçados... Nunca ninguém enriqueceu depressa, com trabalho!

           

     É a senhora dos queijnhos frescos, cheia de reumatismos e que ainda não funciona em euros. Ela e as amigas da consulta externa. – Está melhorzinha? – Hoje sim... E a sua perninha? – Ai, o meu marido fez um taco... – Ando com uma pontada nas cadeiras... – Eu tenho a coluna toda torcida por causa da hóstia porosa... Até no cafezinho, da manhã e da tarde no bar do serviço, são os avcs, as gripes galopantes, as meningites fulminantes, o vizinho que era novo mas foi-se de repente... Onde está a alegria desta gente? Deprimente!

           

     São os jornais, os telejornais. Só desgraças. Até estranho quando abrem com uma caixa normal... Fico a pensar que o país parou. Mas não, as desgraças é que eram já tão normais que passam a segundo plano. Das coisas boas, saudáveis, que nos enchem os olhos e o coração, que nos dão aquela sensação de orgulho lusitano, nada! Pêvea! Honra ao Regiões da RTP1 e à RTP2. Mas até estas excepções têm fim marcado. – Não disse que os políticos desgraçam o que ainda vai valendo a pena? Como me dizia um amigo, “Ele é a desgraça do social, da economia, da política e do governo que desgraça isto tudo ainda mais!”. Este é mesmo um país desgraçado!

 

     Mas é o meu país, do qual não pretendo abdicar! E tenho sorte, porque ainda há muita gente, como eu, que não aceita esta cultura da desgraça, do faz-de-conta, das hipocrisias, das imitações baratas, da superficialíssima pseudo cultura, da ignorância e bestificação, da apologia do suicídio colectivo. Não contem comigo para isso! Mas cá estarei, com muitos outros, para dar uma palavrinha construtiva, se deixarem... Calma! Apenas quando desempoeirarem essas cabecinhas. Até lá, passem bem, divirtam-se, mas não esqueçam que isso de cidadãos menos iguais já foi motor de muitas transformações. Frases como “os trabalhadores têm de se sacrificar em nome da economia” são demais. Mesmo os mais tolos sabem que o fim último de qualquer sociedade é o bem-estar de todos e de cada um. Inverter esta máxima é arranjar sarilhos. Pensem, reflictam e desçam dos pedestais efémeros, para evitarem surpresas desagradáveis. Afinal, a verdade, a justiça, sem grande perda de lucros, está à pequena distância de um braço estendido, de uma mão firme que é capaz de fazer toda a diferença.

 

Lisboa, 26.07.2002

 

 

2001

 

O Daniel é fixe!

 

     Daniel Campelo pode ser o símbolo da degradação a que chegou a política no nosso país. Mas também pode ser encarado como o homem corajoso que evitou coisas piores.

           

     É que não há alternativa ao governo PS. Que me perdoe o Dr. Durão Barroso, mas ainda o estou a ver há uns bons anos atrás a dizer que a UEC cacarejava na razão inversa dos ovos que punha. E talvez tivesse razão. Mas nessa altura, pelo menos tinha alguma piada, reconhecia-se nele um bom líder e um militante aguerrido que, em poucos minutos, dava a volta a uma RGA. Agora não. É calmo demais, monocórdico, apagado, sem piada. Não faz rir ninguém nem parece entusiasmar como outrora.

           

     O queijo Limiano, cujo filho é ainda mais feio do que o pai, contrariamente aos seus efeitos colaterais, faz lembrar, pelo menos uma vez por ano, a importância de um homem, aparentemente pacato, que desafiou a sua estrutura partidária, arriscando-se ao deserto político, para em troca de um favor ao Governo e ou ao país – depende do ponto de vista -, favorecer o desenvolvimento do seu concelho e da sua região.

           

     Daniel Campelo pode não ser o exemplo de como se deve fazer política, mas parece ser o único capaz de dar a cara, assumindo em público que há favores políticos. É assim como a história das bruxas. Daniel Campelo confirma o ditado. E é o homem mais falado durante a discussão do Orçamento de Estado. Diria mesmo que sobre este quase só ouvi falar do que ele ia ou não fazer. Nem o deixaram jantar em paz.

           

     Parece que não, mas é. Embora não queira acreditar que a política no nosso país se alimente destes episódios. À imagem de um homem isolado no Parlamento, alvo e resumo dos ataques da oposição. Quase faz pena, não por ele, mas todos nós. Campelo traidor, Campelo herói. O Daniel é fixe!

 

     Lisboa, 08-11-2001

 

América sob ataque

 

     Já me apeteceu escrever, por diversas vezes, sobre o ataque terrorista do passado dia 11 de Setembro. O dia que poderá ter mudado o Mundo, foram dizendo uns quantos entendidos. Vi, revi, como toda a gente, um acto sem precedentes, conjugando um desastre aéreo com uma demolição espantosamente eficaz, de um símbolo financeiro dos EUA. Outro ataque, ao Pentágono, também um símbolo, agora da segurança e poder da guerra, menos mortífero, não deixa de ser ainda mais significativo. O resto não sabemos ao certo. Casa Branca, Capitólio..., hipóteses avançadas, mas não completamente esclarecidas, como, provavelmente, nunca se saberá o que, de facto, provocou a queda prematura do avião suicida.

           

     De tudo, até hoje permanece a primeira ideia. A de como foi possível um atentado com estas proporções no coração do país mais poderoso do planeta Terra, não se entendendo que, apesar das informações detidas e da esperada eficiência dos serviços secretos, não tenha sido possível evitar a catástrofe. Incrédulos, olhámos para um gigante impotente, em estado de choque, que não queira acreditar no que lhe acontecia. A tese de que os EUA privilegiaram a defesa contra o inimigo externo descurando a segurança interna, facto para que Al Gore já alertara, não explica tudo. Sabe-se também que não é fácil evitar acções terroristas, mas ataques desta envergadura parecem quase inverosímeis. As primeiras reacções do Presidente e de outros responsáveis americanos, produzidas ainda a quente, deixaram perceber isso mesmo, que ninguém conseguia explicar razoavelmente o sucedido.

           

     O alvo Ossam Bin Laden ganhou alguns contornos de bode expiatório, pela forma como foi apresentado, como se o arqui inimigo americano fosse a resposta necessária, mas demasiado imediata. Levou muito tempo até à apresentação formal de provas efectivas, das quais apenas altos responsáveis de alguns países tiveram conhecimento. Não se esperava que fossem divulgadas em todo o seu pormenor, mas seria inteligente que os media pudessem divulgar, pelo menos, um resumo superficial dessas provas. Claro que Bin Laden está ligado a actos terroristas e mesmo que não fosse responsável pelo atentado de 11 de Setembro merecia castigo. Não é isso que está em causa. O que está a perder-se, mais uma vez, é a possibilidade de mobilização das consciências a nível global. Por todo o planeta, com algumas poucas excepções, houve uma pronta condenação do atentado. Ninguém ficou indiferente ao horror das imagens, à violência do crime perpetrado. Mesmo os que, com eu, não morrem de amores pelos americanos, não deixaram de repudiar uma acção tão estúpida, cruel e desnecessária. Por isso temos direito a uma explicação, por mais genérica que seja. Sim, porque a globalização deve ter dois sentidos.

 

     Claro que Bin Laden é um terrorista. Criado, de certo modo pelos EUA, numa visão quase maniqueista da política internacional, ao sabor de interesses. Agora o apoio à Aliança do Norte, em coligação com a Rússia, deve deixar um sabor amargo a quem empurrou os Thaliban para o poder. Mas outros países fazem o mesmo, também cá pela Europa. Mas isso pouco importa agora. Interessa sim aproveitar estes acontecimentos para pensar, reflectir, entender que se impõe uma nova ordem internacional. Torna-se imperioso esbater as diferenças entre ricos e pobres. É necessário dar condições aos países mais frágeis, económica e politicamente, para seguirem caminhos de desenvolvimento. Não criando novos feudalismos, retirando a riqueza produzida, mas multiplicando-a para todos, dignificando as pessoas, como cidadãos do Mundo. Sem bloqueios. Só servem para exasperar, unir à volta de fundamentalismos. A democracia participativa não nasce de boas intenções de pretensa defesa dos direitos humanos, assenta na satisfação das necessidades básicas, no esclarecimento, na mudança de mentalidades. É neste contexto que a mobilização contra o terrorismo pode surtir efeito.

 

A democracia não resolve todos os problemas, mas é o melhor sistema que conhecemos. Também não evitará nunca o terrorismo, enquanto houver homens que entendam defender causas de modo violento. Mas, pelo menos atenua-o, localiza-o, isola-o. Mas o terrorismo que tem o rosto Bin Laden, não é localizado, e uma ameaça global, resvalando perigosamente para um confronto entre muçulmanos e cristãos, reavivando velhas cruzadas. A guerra religiosa é a mais perigosa de todas, porque deixa a vida reduzida à alma, antecipa a morte pela redenção. Capta facilmente quem não tem nada, com a promessa de tudo, gastando-se pouco. É também um confronto civilizacional, manipulando-se carências, criando-se frustrações, potenciando sentimentos xenófobos. No caso Bin Laden, não deixa de ser curioso que faz tudo isso à custa de fortuna pessoal obtida no sistema que ele próprio combate, incluindo o tráfico de droga, a ser verdade essa ligação. Mas o fanatismo alimenta-se assim, não olha a meios, mesmo que contrariando os princípios do fim.  

 

A globalização, que começou com os Descobrimentos, sempre criou desigualdades. O desenvolvimento dos meios de transporte e das telecomunicações, onde a Internet tem vindo a desempenhar o principal papel, acentuou-as. Os ricos ficaram mais ricos e os pobres mais pobres, pela voracidade do sistema económico, dominado pelas grande potências. O problema é que os pobres souberam da sua condição, perceberam a injustiça da distribuição da riqueza, viram e sentiram a desigualdade. Até aqui, não há novidade nenhuma, sabia-se que ia ser assim. Tinha de ser assim. O Mundo dito Ocidental nada fez, sabendo do desfecho. Preocupou-se apenas consigo mesmo, tendo por desculpa a guerra fria, numa divisão de influências. Derrubado o Muro da Vergonha, com a desagregação da URSS, permaneceu no marasmo, não entendendo que Israel e a Palestina significavam mais do que um caso de guerra localizada, que a China ganhava mais peso do que previa o Perigo Amarelo. Mas também há Norte e Sul. A América Latina e a África, diferente, segmentada. Há um Japão em profunda crise económica. Há uma impotência das grandes potências em remediarem os seus próprios males. É este o Mundo que hoje temos, enredado numa teia, de múltiplos interesses e perigos.

           

     Felizmente, aquilo que parecia uma loucura deu lugar à prudência, aos consensos. Os EUA souberam entender, a tempo, que o Mundo tinha mudado. E, sobretudo, que sem os Árabes, seria impossível isolar os Thaliban, evitando-se consequências muito graves. Papel da velha Europa, mais madura, apoiando, mas mantendo a razão, influenciando sempre. Mas a América ao Ataque ou Guerra ao Terror ou, ainda Liberdade Duradoura, parece ir sair muito cara aos EUA e, quem sabe, à Europa. Não só por eventuais retaliações terroristas e consequências no Médio Oriente, mas, sobretudo, pela alteração da sua política de alianças e das cedências que já fizeram ou terão de fazer perante os novos aliados. A geopolítica altera-se completamente, o que seria impensável há menos de um mês. Pode ser um bom prenúncio para a nova ordem mundial, mas, porque desconhecidas as sequelas, também geradora de conflitos que ainda não descortinamos.

           

     O ataque aos Estados Unidos, apesar do morticínio, serviu para mostrar como vai o nosso mundo. Pena que só a desgraça faça reagir e mudar de rumo, se é que vamos mesmo mudar de direcção. Liberdade Duradoura é uma expressão feliz. Pela positiva, subentende que se impõe uma terapia eficaz, a adopção de medidas adequadas, a compreensão do momento que vivemos e das suas causas. De pouco serve a liberdade se a não podemos viver em paz. Se sentimos permanente insegurança, a ameaça terrorista. Tem de ser feita alguma coisa, que se veja, que se sinta. A ONU não pode ser mais uma organização onde cada país pode dizer o que quer, mas sem aplicação prática. Não pode ser uma devoradora de recursos, para satisfazer apenas representações diplomáticas, tem de agir. A ONU tem de ser repensada, reestruturada, agilizada na sua acção, com objectivos concretos, bem definidos, com soluções globais. Os EUA não podem continuar a ser o polícia do Mundo. A NATO e outras organizações regionais, não podem pautar a sua actuação por empurrões, por interesses sectoriais. A ONU tem de assumir-se como um organismo supra Estados, com poderes efectivos na regulação mundial, nos seus múltiplos aspectos.

           

     É isto, senhores políticos, que temos de fazer. Para evitar outros ataques terroristas, tão ou mais hediondos, que possam acontecer. É difícil, complexo, mas possível. Basta vontade. Basta que os mais poderosos entendam que renunciando a um pouco da sua riqueza estão a fazer uma espécie de seguro de vida e de bens. E a contribuir para um Mundo mais justo, capaz, seguro. A opinião pública está preparada, cada vez mais. A globalização também tornou as pessoas mais exigentes, mais participativas, mais conscientes da sua função de cidadãos do Mundo. Contem com elas, mas sem subterfúgios, atestados de menoridade. Divulguem as provas contra Bin Laden, sem perigo do secretismo militar. Mas faça-nos saber, participar, para nos sentirmos úteis, dignos do nosso estatuto, adultos nas nossas opções. Entendam, finalmente, que todos nós temos a ver com tudo o que se passa no nosso planeta. Porque somos cidadãos dele, porque queremos contribuir para um Mundo melhor. Para todos vivermos.

 

Lisboa, 17-09-2001

 

Porque não fui votar...

 

     Não exerci o meu direito de voto, de modo voluntário e consciente. Porque o dever de votar é menos importante do que o direito à indignação que, estou certo, foi a razão principal da abstenção. Gesto que não pode ser confundido com indiferença, preguiça ou acomodação.

 

     Votar num candidato sem convicção, o menos mau ou o que falou melhor, não é votar em consciência nem demonstrar empenho na democracia. Votar em branco ou anular o boletim de voto, além de não expressar coisa nenhuma, serviria apenas os objectivos de quem se contenta com uma razoável participação popular. Não votar, abstendo-se, significa claramente o que pensamos da classe política que temos. Se a separação era já de facto, ninguém duvidará que o divórcio se consumou agora.

 

     Se num divórcio há culpas de ambas as partes, a verdade é que os cidadãos apenas pecaram por ter eleito os políticos. Mas estes não só não souberam respeitar o conteúdo do mandato que lhe demos, como se auto marginalizaram numa classe nova, por contraposição à sociedade civil. Esta designação, que ouvimos todos os dias, só pode significar isso, que os políticos deixaram de pertencer à sociedade donde saíram e que os elegeu.

 

     Vamos agora ouvir, de novo e repetidamente, que têm de ser tomadas medidas para reconciliar os cidadãos com o poder político, com as suas instituições, motivando-os para a participação democrática. Temo que se fiquem pelos discursos, pelas boas intenções, até porque já se disse que afinal a abstenção não foi assim tão catastrófica, como alguns previam.

     Se não é assim tão grave o alheamento de metade dos cidadãos com direito a voto nestas eleições, então talvez a medida mais adequada seja a de substituir o acto eleitoral por meras sondagens de opinião, mais simples, quase infalíveis e muito mais baratas.

 

     Se serve de alguma coisa, e temo que não, gostava de pedir aos nossos políticos que se filiem de novo na sociedade civil, que somos todos nós, que deixem de lado as quezílias partidárias e inter-partidadas, que se abstenham do insulto e da demagogia e que dediquem apenas metade do tempo que nisso consomem ao país e aos cidadãos. Verão que as próximas eleições terão uma maior participação e eles próprios, talvez, possam sentir-se mais úteis e realizados. Nós cidadãos abstencionistas agradecemos, porque acima de tudo somos portugueses e amamos Portugal.

 

Lisboa, 14-01-2001

 

 

1999

 

Coisas de loucos

 

     Toda a gente conhece histórias de loucos, uns mais sãos de que outros, mas todos loucos, internados ou à solta. Lembro-me mesmo de ouvir alguém a contar episódios, mais ou menos, reais, que, por vezes, de loucura, só tinham os trejeitos e o olhar esbugalhado do contador. O real, se o era, assim dito, transformava-se num surrealismo quase delicioso, transportado para a anedota de café ou de cervejaria, bem comida e regada, com um ou outro intervalo de desanuviamento.

 

     Desde o louco que estava internado por erro da democracia – porque simplesmente dizia que o Mundo estava maluco, mas a maioria afirmava o contrário -, até ao que passeava a bota, agarrando o atacador, como se fosse uma trela e gritava: “Anda, Bobi!”. Para quem não conheça a história, é bom esclarecer que ele só fazia isso por pirraça. Quando alguém lhe perguntava “Então a passear o cãozinho?…”, ele respondia “Ah... e eu é que sou maluco?… Então não vê que isto é uma bota?”. Virada a esquina mais próxima do manicómio, voltava-se para a bota e dizia “Boa, Bobi, já enganámos mais um…”.

 

     Mas eu próprio assisti a alguns casos que provam que os loucos não são tão doidos quanto se supõe, todos maluqinhos do “Júlio de Matos”, em serviço externo. Um deles tinha a mania de que era eléctrico e, com o braço direito levantado, acertava o passo em cima de um dos carris que descia para a Praça do Chile, até que o tlim, tlim do verdadeiro amarelo o afastava para o passeio, sinal de que a maluquice não afectava o seu instinto de sobrevivência. Outro, mais prosaico e mundano, negociava pelos cafés da mesma praça, primeiro pedindo um pastel de nata, depois tentando vender o mesmo, até que alguém, em desespero de causa, lhe oferecia um café, completando a ementa pretendida, deixando-me a sensação de que teria de reavaliar os meus conceitos de loucura e de inteligência prática, para não entrar em sofisticadas noções de markting.

 

     Mas o que me enchia mesmo as medidas era o que batia numa lata de banha vazia, porque despertava as consciências mais sonolentas. Era um maluco alto, esguio, bem vestido, com um sorriso aberto, quase até às orelhas, que atacava, normalmente, no Campo Pequeno, numa paragem de autocarro perto do “Tátú”. De mansinho, aproximava-se da fila de espera, andava de um lado para o outro, até se familiarizarem com a sua presença. De repente, parava e desatava a bater na lata. Claro que toda a gente se assustava com o repentismo, mas logo se recompunham ao verem de quem se tratava. E o maluco então desatava a correr, batendo ainda mais desalmadamente na lata, até que desaparecia em direcção ao Campo Grande. Quem esperava o autocarro, depois do susto, recompunha-se, olhava e sorria para o companheiro de fila de espera, encolhendo  os ombros, mas, invariavelmente, esboçando um sorriso natural que, porventura, seria o único daquele dia de uma vida mal parada na paragem de um autocarro para a Póvoa de Santo Adrião, Santo António dos Cavaleiros, Loures e por aí fora. Sempre fique com a convicção de que este maluco era uma espécie de anjo do fim da tarde, encarregado de fazer sorrir a quem se resignava à adversidade.

 

     Tudo isto leva-me a repensar os conceitos de doido, louco e maluco, que não são, necessariamente, sinónimos, e, muito menos, reveladores de deficiência mental. Mas mesmo que sejam, onde se situa o padrão que os distingue? Bom, como já é tarde, vou-me recolher aos lençóis e sonhar com um mundo cor de rosa, doseando, calma e equilibradamente, a doidice, a loucura e a maluquice que me cabe, extrapolando que todos os outros são, no mínimo, mais doidos, loucos e malucos do que eu.

 

Lisboa, 25-02-1999

 

Amigos chatos

 

     Os amigos são o melhor que há. Chavão real e bonito, já que sem amigos vive-se sozinho, isolado, acabrunhado. Mas aqueles gajos que se dizem nossos amigos, só porque nos foram apresentados circunstancialmente, são, geralmente, uns chatos.

 Logo na segunda-feira, telefonam a perguntar pelo processo da empresa, da tia, da prima, da amiga, que quase não conhecem mas que é boa rapariga, para ver pá se isso se pode resolver ou andar mais depressa. “Claro que para amigos não há essas coisas, mas ficaria muito grato se desses um jeitinho. Já agora, diz lá o que precisas, que os amigos são para isso mesmo!”.

 

     Pois é, mastigamos a saliva, mordemos o cigarro e vem-nos à memória uma frase batida. Não que seja o primeiro dia do resto da nossa vida, como na canção do Sérgio Godinho, mas simplesmente porque com amigos como estes não precisamos de inimigos, como canta o Paulo de Carvalho.

 

     São amigos assim que nos fazem duvidar da amizade, mas que, ao mesmo tempo, nos fazem acreditar nos nossos amigos. Os que não perguntam nada, porque pretendem apenas desfrutar da nossa companhia. Os que, mesmo perguntando, sabem entender o que pode e não pode ser facilitado com a amizade. Os que, mesmo pretendo perguntar, julgam melhor ficar calados para não pôr em causa a amizade. São amigos como estes que nos fazem sentir que temos importância apenas porque somos amigos deles. Apenas porque, mais do que a relação profissional, prevalece a nossa relação pessoal.

 

     E é essa amizade pura, salutar, cúmplice, feita de pequenos nadas, mas cimentada em tudos, que nos leva a pensar que o Mundo, apesar de todos os males de que padece, ainda é um lugar onde se podem cultivar alguns valores básicos, que sustentam o homem e a vida em sociedade.

 

     Assim sendo, que venham mais cinco, com a força do Zeca, trazidos pelo vento, pela mão do Alegre, mas todos despidos de preconceitos, de manias bestificantes, de sonhos de grandeza baratos, de retóricas pretensamente estimulantes, de sub-reptícias intenções e paleio gratuito. Que venham apenas como são. Feios ou bonitos, magros ou gordos, pobres ou ricos, mas autênticos. Apenas autênticos, tal como são.

 

     Portanto, cuidado com as imitações. Tal como a mulher de César, não basta ser, mas tem, também, de parecer. Donde, se impõe a recomendação: evite as amizades mais dúbias, porque lhe podem ser fatais. Não alinhe em esquemas facilitistas, como jantares, boîtes e saunas com tudo pago. O prazer que possa experimentar, pode ser também o acender do rastilho da bomba detonadora que o fará cair em desgraça. Quem disse que esta história não tinha moral?

 

Lisboa, 10-02-1999

 

Falando de nada

 

     Ainda só escrevinhei umas poucas crónicas e já me vai faltando o tema. Resolvo então enfrentar a assustadora página em branco e vencê-la pelo cansaço. Da página em branco, claro! Só que a página em branco é mesmo chata. De formato A4, branca de cima abaixo, mais parecendo um lençol de uma madrugada de verão, em que o sol, vindo a caminho, ainda não subiu a montanha. São as noites de insónia que nos deixam despertos para imaginar quase tudo, menos umas simples frases para preencher aquela folhinha de papel intrigante, rebelde, convencida, teimosa e estúpida, que não se deixa desvirginar nem por uma simples palavra, mesmo que seguida de uma reles vírgula intempestiva.

 

     De branco em branco, perpassa-se a página numa esquadria meticulosa, mas o resultado permanece igual à cor da dita. Nem da esquerda para a direita, nem de cima para baixo, mudamos o mutismo da maldita página em branco, que faz questão de ficar igual a si própria, num autismo assumido de virgem que fez voto de castidade, mas a quem, paradoxalmente, nunca lhe passou pela cabeça ir militar para um Convento. Nem o gesto gentil ou, em desespero de causa, o violento ataque ao teclado demovem a bendita página branca a tingir-se de caracteres pretos, mesmo que se tente explicar-lhe que o nosso desespero já se transformou em velório.

 

     É assim como aquelas pessoas que acham que as coisas são como são e que não há nada a fazer. Se sempre se fez assim, porque se tem de fazer diferente? Cada chefe, cada moda. Éramos tão felizes, até agora. Porque têm de mudar as coisas, se até aqui estava tudo bem? Maninha, maninha, já não entendo nada, vê lá que me dizem que tenho de pensar nas coisas que faço! Claro que digo que penso, mas continuo a fazer tudo como dantes e quando me dizem que não pensei digo que “sim, Senhor!” e que até me dói a cabeça de tanto pensar. Estou até a pensar em meter baixa por esgotamento do cérebro, que não me pagam para o utilizar.

 

     Estranha maneira de vencer a reacção, da página em branco. Porque me havia de lembrar de uma ideia tão peregrina e banal para ocupar um espaço tão branco e virginal? Também não sei, se é que pretendiam perguntar-me. Talvez porque ainda ouça os grilos, que musicam a noite, ou os pirilampos que, intermitentemente, riscam a escuridão. Talvez porque sim ou talvez porque não. Pronto, aceito que, vulgarmente, não se ouçam grilos nem se vejam pirilampos em Macau e que tudo não passe de uma simples divagação. Mas, desculpem lá, tenho a certeza de ouvir o latido do cão do meu vizinho, que, ainda a esta hora, está a fazer  “ão, ão!”.

 

     Mas se o cão é parvo, por latir por nada, a uma hora a que, confortavelmente, deveria estar deitado, quanto muito, em sonho, ganindo por um colossal osso imaginário, tenho de condescender que me deu o mote final para preencher aquela página em branco que me atormentava.

 

     E só agora me dei conta de que, se calhar, descontando as deshoras e as divagações, há aqui alguma coisa que tem a ver com a realidade, embora duvide muito do mérito da ficção e, muito mais, do primor da rimária. De facto, a semelhança com situações reais, só poderá ocorrer por mera coincidência e contra a nossa expressa vontade. Porque nos propusemos apenas vencer o espectro de uma voluntariosa página em branco. Parafraseando o meu antigo colega Durão Barroso, nos tempos do saudoso “PREC”, é bem verdade que há gente que cacareja na razão inversa dos ovos que põe.

 

Lisboa, 09-02-1999

 

Novo Governo

 

     O actual governo faz-me lembrar um episódio, quase surrealista, em que me vi envolvido, já lá vão uns bons anos. Ia eu, meio distraído, ladeando a Feira Popular com o meu saudoso Fiat 128, quando deparo, repentinamente, com a mão estendida de um agente da Polícia de Trânsito, convidando-me gentilmente para uns minutos de cavaqueira.

 

      “Então não sabe que a linha contínua não é para pisar? Está cego ou quê?”. Pausa, engulho em seco, mas raciocínio rápido. “E o senhor guarda não viu que eu tive de cometer essa infracção porque aquele táxi saiu de repente e eu não tive outra solução para evitar um acidente?” - respondi eu apontando para um táxi qualquer, tão distante que já nem dava para ver a matrícula.

 

     Sorte a minha, que o polícia estava distraído e parece ter aceite a minha desculpa. Mas, como qualquer outro ser dito inteligente deste planeta, que a última coisa que aceita é dar o braço a torcer, resolveu manter-me, atento e venerando, à sua suspeita de que estaria na presença de um infame infractor ou, pelo menos, potencial receptor de uma multinha que lhe salvasse o dia. 

           

     Documentos apresentados, a volta de revista ao meu querido Fiat 128, uma cara cada vez mais pesada, porque não deixava que nada faltasse ao meu carrinho, até que um olhar felino e, ao mesmo tempo aliviado, o leva, já quase sorrindo de prazer, a atirar-me:

 

     “ Os seus pneus são velhos!”. Fique para morrer, mas lá adiei o colapso, pelo insólito da acusação. “ Velhos? Mas como Senhor Guarda, se os acabei de comprar?”.  “Já disse, são velhos, não se nota logo?” . “Ó Senhor Guarda, como é possível se os comprei há três dias?”  – insistia eu, já pensando que, pelo rumo da conversa, ainda acabaria por entrar para o rol dos erros judiciários. 

 

     “ Ó homem, será que não me faço entender? O que lhe estou a dizer é que esses pneus não são novos. Já foram, mas agora não são!... Percebeu?” . De repente, fez-se luz no meu espírito e, sem hesitar, respondi-lhe: “ Pois claro, Senhor Guarda, tem toda a razão, de facto não são pneus novos, mas sim recauchutados... Mas, estão legais não estão?” .

 

     “ Claro que sim, mas são velhos ou não são?”.  “ São sim, Senhor Guarda, são recauchutados!...” E lá nos despedimos, com a maior cordialidade, enquanto eu ia remoendo que é falando que a gente estabelece diálogo e se entende, mesmo que o consenso, por vezes, não passe de um vulgar eufemismo.

 

Lisboa, 25-10-1999

 

Sociedade Civil

 

     Teleatento aos noticiários da RTPi, já me tinha apercebido de que em Portugal havia alguns problemas de classificação dos extractos da sociedade moderna. Mas acabo de entender que a moda também já se instalou em Macau, razão que me leva a questionar da oportunidade de rever, entre outros mais distantes, Marx e Engels, actualizando a nomenclatura das classes sociais. Não que isso signifique uma magna questão filosófica, mas apenas uma forma prática de nos situarmos no tempo e espaço em que vivemos.

 

     Recuando um pouco no tempo, sabemos que as classes sociais iam da nobreza ao povo, passando pela burguesia, sempre com o clero em sobreposição ou pelo meio, como se preferir. Posteriormente, mantendo-se o clero, soubemos que havia uma classe média e uma classe operária, além dos podres de ricos. Se a ditadura do proletariado já deu o que tinha a dar, é a classe média que suscita uma maior preocupação nos últimos anos, porque congrega todos os que, tendo esperança de enriquecer, dependem do salário pago pelos patrões, estes, infelizmente, com maior propensão para a riqueza, até porque o fisco é implacável com os trabalhadores por conta de outrém, justificando, por isso mesmo, a classificação dos que suportam e explicam a média dos impostos arrecadados, com segurança, pelo Estado.

 

     Houve mesmo quem dissesse que é a classe média que suporta a política e os políticos, porque sendo a mais culta tem a democracia no sangue e sendo a melhor taxada é quem paga, em boa parte, os ordenados dos políticos, o que parece aberrante e masoquista. Mas a verdade é que a classe média tem uma certa propensão ao suicídio, que lhe advém da posição de charneira que, com o orgulho herdado da antiga burguesia, vem desempenhando na sociedade moderna, embora, na maior parte das vezes, entre uma sandes e uma imperial, mordendo, entre dentes, os impropérios e as desditas próprios da sua condição actual.

 

     Para complicar a ideia de que é a classe média a classe motora da sociedade, diga-se que é desta que sai a maioria dos políticos, o que, na verdade, cimenta a tese do auto flagelo e ou explica o desespero de quem se encontra entalado entre os restantes estratos sociais. Mas, ironia das ironias, são os semelhantes mais semelhantes dos cidadãos médios que, graduados em políticos, talvez por repulsa à sua condição, lixam os seus concidadãos, agora menos semelhantes.

 

     E a primeira forma destes políticos conseguirem esse objectivo é distanciarem-se do meio de onde saíram, criando uma nova classe social. Nunca disseram qual era, porque, como políticos que se acham, não são capazes de assumir essa nova condição e, sobretudo, não querem arriscar uma interpretação duvidosa que possa não ser entendida pelo comum dos mortais, designação que passam a aplicar aos concidadãos eleitores.

 

     Eis as razões porque os políticos criaram a sociedade civil. Deste modo, discretamente, assumem que há uma sociedade política que se contrapõe à civil. Se esta abrange ou não as classes tradicionais, pouco importa. O que faz fé, neste contexto, é que havendo uma sociedade civil, há agora uma sociedade política, que devendo ser uma emanação da sociedade em geral, passou a ser uma sociedade exclusiva, à parte, com identidade própria. O impróprio é chamar-lhe sociedade, já que não sendo cultural, assistencial, desportiva ou recreativa, é, na verdade, a classe dos dirigentes do País, a classe dos que detêm o poder, a classe dos que, efemeramente, se julgam acima do comum dos mortais, dos eleitores que os elegeram, dos cidadãos que somos todos nós e que somos seus semelhantes, tão desemelhantes agora, mas tão ou mais iguais sempre que os votos contam ou a nossa paciência se esgota.

 

Lisboa, 18-01-1999

 

Os novos Século e Milénio

 

     A memória dos homens é curta. Frase contundente, mas objectiva, porque retrata a efemeridade das nossas recordações, das lembranças que mantemos do nosso passado. Mas uma coisa é o registo da nossa vida e outra a cultura que perpassa pelas gerações, assente em bases documentais ou enquadradas numa lógica formal a que todos, com menor ou maior rigor, temos de aderir enquanto seres gregários e membros da sociedade em que nos inserimos.

 

     Vem isto a propósito da confusão que se tem vindo a gerar sobre o início do Século XXI e do Terceiro Milénio. As teorias sobre esta matéria têm vindo a esgrimir argumentos, mas parece óbvia a que aponta como marco daqueles eventos o ano 2001. Pena é que organismos oficiais, sem que os seus dirigentes pensem, embarquem, como ainda hoje vimos na TDM, na perspectiva menos defensável. A não ser que ao se dizer que há pouco tempo para resolver um problema, estejam a pensar que ainda dispõem de quase dois anos, o que lhes dará um período de tempo folgado para ultrapassar a inércia da Administração Pública.

 

     Vamos, contudo, à questão que interessa. Ainda há poucos dias, alguém defendeu, com argumentos irrefutáveis, a teoria de que o Século XXI e o Terceiro Milénio só começam em 2001. Por isso mesmo, a nossa contribuição vai-se limitar a uma exemplificação prática, com o tentativa de contribuir para um melhor entendimento desta questão. A nossa Era conta-se a partir do nascimento de Jesus Cristo, de acordo com o calendário Gregoriano, herdado dos Egípcios (2782 a.C.) e dos Romanos (46 a.C.), com adaptações ao longo do tempo e estabilizado a partir de 1582. Por isso, quando situamos um facto histórico, dizemos que ocorreu a x ou y anos, antes  (Ex.: 1500 a.C.) ou depois (Ex.: 1500 d.C.) de Cristo.

 

     Hoje, todos sabem que o ano tem 365 dias, divididos em meses de 30 e 31 dias, com excepção de Fevereiro que, normalmente, tem 28 dias, a não ser nos anos bissextos, com 29 dias. Se os anos se contam a partir do nascimento de Jesus Cristo, e sabendo que um ano só se completa ao fim de 365 dias, podemos exercitar e fixar a contagem do tempo de um modo simples e prático.

 

     Num exemplo comezinho, que nos atinge a todos, podemos falar da data do nosso aniversário. Quem nasceu em 26 de Abril de 1976 completa um ano de vida em 26 de Abril de 1977, o que quer dizer que completa 10 anos de vida na mesma data de 1986 e 100 anos em 2076. Como se depreende, o nosso primeiro aniversário ocorre ao fim de 365 dias de vida, ou, dito de outro modo, após o decurso do período de um ano sobre o início da nossa existência. É óbvio, também, que em 26 de Abril de 1999 a pessoa em causa tem 23 anos, mas manterá essa idade até ao momento de completar os 24 anos, a  26 de Abril do ano 2000.

 

     Aplicando o mesmo princípio universal da contagem do tempo e sabendo que o Século e o Milénio se contam a partir da data de nascimento de Jesus Cristo, temos que o Século I foi até ao dia 31 de Dezembro do ano 100, começando o Século II em 1 de Janeiro de 101 (que, por sua vez, terminou a 31 de Dezembro do ano 200), donde o Século XXI terá início também em 1 de Janeiro de 2001, o mesmo acontecendo com o Terceiro Milénio.

  

     Assim, recomenda-se calma às pessoas e dirigentes mais afobados ou menos informados, porque, contrariamente ao que pensavam ainda têm mais um aninho pela frente para realizarem os vossos projectos e sonhos, mesmo que,  infelizmente, não sejam os nossos projectos e sonhos. Mas paciência, há quem ponha, quase sempre, o carro à frente dos bois.

 

Lisboa, 16-01-1999

 

Muitas promessas

 

     Promete-se quase tudo. Bom casamento, felicidade, emprego vantajoso, riqueza. É mesmo possível encontrar até a cura para doenças sem esperança e um lugar no Paraíso, depois de batermos as botas. Promessas há muitas, diria Vasco Santana.

 

     Prometem os políticos, mundos e fundos. Dizem que, se forem eleitos, haverá pão, casa e habitação. Não é assim actualmente, porque dejá vu, mas, resumindo, vem a dar exactamente na mesmíssima coisa. Prometem mesmo contradições, como o aumento de vencimentos e o abaixamento dos impostos. Prometem, prometem, prometem. Até ao fim da campanha eleitoral, naturalmente.

 

     Mas, honra lhes seja feita, não são apenas os políticos a prometer. Prometem os videntes e cartomantes, abrindo vísceras ou um simples baralho de cartas. Prometem os gurus, seguros de dominar o mundo com os seus ins e iangs. Prometem os financeiros a multiplicação dos nossos parcos recursos e depois se vê as caldeiradas que isso dá. Prometem os dietistas acabar com as banhas indesejáveis. Prometem os vigaristas, que são uma espécie de samaritanos, porque tentam aliviar as pessoas dos pecados do vil metal. Prometem muitos o reino dos céus, que é uma coisa que, por não se alcançar, serve como sucedâneo do chupa chupa que já não temos idade para chupar. Prometem os vendedores da banha da cobra, que não têm o exclusivo da actividade, do envernizamento dos sapatos à brilhantina dos cabelos, passando pelas curas mais milagrosas, de que o pobre, embora esperançado, desconfia. Prometem os amigos de ocasião, antevendo que a promessa é como um investimento, de curto, médio e longo prazo, atendendo à proficuidade da amizade que conseguem estabelecer ou consentem que seja estabelecida.

 

     Prometem todos. Prometem, prometem, prometem. E, de tanto repetida, a promessa passa de sonho a quase realidade. Como se fosse um processo dinâmico em que acreditamos, desconfiando de seguida, para voltarmos a acreditar. A sensação, por vezes difícil de assumir, de que fomos enganados, retalha-nos o orgulho, mas, porque fomos feitos para resistir às forças do destino, quedamo-nos num simples engulho que, de doença aguda passa a crónica e tolerável, adocicada com uns enos e compensans, ao fim da noite. Claro, que acrescentando um lexotan, evitamos ainda o risco de sonhos indesejáveis, dando uma pausa ao destino inexorável.

 

     Confesso que parti sem ideias preconcebidas, mas assaltou-me a conclusão de que viver não é assim tão fácil. Resta-me prometer a mim mesmo que é melhor não acreditar nas promessas que me fazem. Como terapia de recuperação, vou reactivar a minha militância partidária. Pelo menos, assim, posso também prometer, com a margem discricionária suficiente para não me sentir mais atingido que os outros. O que, além de revelador de uma inteligência superior, me evita os compromissos flatulentos e os comprimidos desinibidores.

     É apenas uma questão de prometer e esquecer.

 

Lisboa, 10-01-1999

 

 

1995

 

A Medicina

 

1. HISTÓRIA.

     A medicina, como ciência, nasceu na Grécia antiga, no século IV antes de Cristo.  O seu "pai", segundo reza a história, foi Hipocrátes, um grego de barba encaracolada e nariz de palmo e meio que ia metendo onde era chamado.

     Hipócrates inventou para os seus discípulos uma espécie de juramento que consiste essencialmente no seguinte aforismo: "a doença é um mal necessário para que exista a cura!".

 

2. HOMOGENEIZAÇÃO.

     Hipocondria ‑ mania dos que acham que conseguem memorizar a nomenclatura das doenças conhecidas. Excepcionalmente, alguns tipos conseguem ainda inventar outras.

     Hipocôndrio ‑ região superior do abdómen, de um e outro lado do epigástro, na base do tórax. Para os leigos, é uma região sem interesse, já que fica entre o externo e o umbigo.

     Hipocrense ‑ O m.q. fonte do cavalo, orginada por uma patada de Pégaso, que inspirava os poetas. Assim se entende a falta de inspiração que por aí vai.

     Hipócrita ‑ Palavra grega que se empregava para designar um actor de tragédia ou comédia. Dissimulação necessária nos dias que correm.

 

 3. MEDICAMENTOS.

     O médico para atingir a cura necessita, regra geral, de administrar medicamentos ao doente.

     Estes podem ser de origem natural ou química e podem ser usados externa ou internamente. Embora não pareça, estão neste último caso os supositórios ‑ é a administração por via rectal (que não é o mesmo que via recta, já que esta é enviezada!).

     Entre os medicamentos já hoje em desuso, conta‑se a morfina, que é uma substância alcaloide extraída do ópio. Quando administrada em dose excessiva, diz‑se que o administrado caiu nos braços de Morfeu ‑ eufemismo perfeitamente desnecessário!

 

4. MÁXIMAS.

     Não sendo a medicina política, nem ciência menos certa, há, no entanto, os que gracejam com a medicina ‑ evidentemente, até escaparem das mãos do médico! E, neste mórbido entretenimento, há máximas para todos os gostos:

     ‑ Entre a medicina e o bagaço há uma única diferença chata: o bagaço vai matando, a medicina mata.

     ‑ O papel primordial da medicina é aniquilar o cancro do Pacto de Varsóvia.

     ‑ A ira de Deus é superior aos males dos homens.

     ‑ Convenhamos que não há bela sem senão, mas para isso existe a cirurgia plástica.

 

5. ACHAQUES.

      Achaque significa doença habitual, defeito moral, vício, pretexto, imputação sem fundamento.

     Figurativamente, doença significa coisa incómoda, defeito, vício, mania. Decompondo:

          ‑ Incómodo ‑ é enfadonho, cataménio, mênstruo;

          ‑ Defeito ‑ é imperfeição, falta de alguma coisa;

          ‑ Vício ‑ é mau hábito, impertinência, costumeira;

          ‑ Mania ‑ é esquisitice, extravagância, capricho, teima.

     Donde, se deduz (pela lógica das coisas, ou a dita é quadrada) que sendo achaque o mesmo que doença, os Serviços de Saúde estão povoados de "malandros" e que os utentes do Hospital Conde de São Januário, sobretudo tratando‑se de funcionários públicos, só adoecem quando não têm férias ou licença especial.

 

6. CONCLUSÕES:

     Quem está doente é maníaco.

     Os maníacos são esquisitos.

     Bem me queria parecer que o Hipócrates não funcionava bem do "pinho", óh Júlio!

 

Macau, 13-12-1995

 

O Futebol

 

1. HISTÓRIA.

      Tem as suas raízes na antiguidade, mas organizadamente nasceu na Inglaterra, onde se realizou o primeiro campeonato em 1872. Em Portugal, o primeiro torneio oficial teve lugar em 1906.

      O futebol é um jogo entre duas equipas, compostas por onze jogadores, dos quais um é o guarda‑redes, empenhadas em fazer "golo", isto é, em introduzir a bola (principal instrumento do jogo), jogada com os pés ou com a cabeça, na baliza do adversário.

      Esta definição ignora, obviamente, a "bolinha", o que, sendo também deselegante, é quase perverso ‑ um despautério inacreditável!...

 Ignora ainda uma tal aberrante definição, que a bola pode ser jogada com a canela, o joelho, a barriga, o cotovelo, o nariz e outras partes do corpo menos próprias para esse fim... e até com a mão, quando o Telminho está a mirar a assistência feminina.

 

2. OS JOGADORES.

      Há quem diga que os jogadores são masoquistas. E, de facto, vendo bem as coisas, qual o gozo de andarem para ali uma catrefa de marmanjos atrás de um objecto redondo (para não dizer freudiano), sujeitos a encontrões, caneladas, beliscaduras e apalpadelas?!...

      Mas, a verdade é bem diferente. Deixemos de lado o futebol profissional ‑ que é um estado de desequilíbrio em que o doente já não tem cura ‑ e cinjamo‑nos ao dito amador ‑ que é uma espécie menor, se bem com certas pretensões.

      Neste, os jogadores, retirando alguns mais nervosos, jogam para movimentar o esqueleto. Isto é, como ir dar umas corridas à Guia é "chato p'ra caraças", assim sempre é mais divertido, além da vantagem de, desportivamente, lixar a canela do amigo por tolerância.

      E depois, há também a alegria do "GOOOOOOOLLLLLOOOOOO!..." ‑ o que é sempre uma alternativa de "descarga" para um data de coisas. Ou seja, a LIZA MINELLI gritava aos combóios, mas como em Macau não os há (ainda)... grita‑se ao que calha!

 

3. PÚBLICO.

      Por paradoxal que pareça, o público em Macau não paga nada para ver o futebol. Até hoje, não se sabe se é pela qualidade dos jogos se é um dado adquirido por reinvidicação das massas associativas.

      No resto do mundo, os "futeboléfilos" fazem bicha nas bilheteiras e pagam "bateladas" de massa para ver um mau desafio e, às vezes, ainda se arriscam a levar cargas de porrada dos adeptos da equipa contrária. Enfim, há gostos para tudo!

      O público, por definição, é barulhento e diz‑se mesmo que o barulho "puxa" pelas equipas, a favor ou contra, consoante os adeptos estejam em maior número, com mais fôlego ou com maior capacidade de moerem as cacholas dos adversários.

 

 4. O TRIO DE ARBITRAGEM.

      O trio, como indica o termo, é composto por três tipos: o árbitro e mais dois "gajos" que acenam, de vez em quando, com uma bandeirinha encarnada (mas não são, necessariamente, nem comunistas nem do Benfica).

      Diga‑se, em abono da verdade, que o trio de arbitragem é desnecessário e com tendência a desaparecer com a evolução da democracia. Tempos virão em que os jogadores se bastarão a si mesmos, sem necessidade de lhes estarem constantemente a apontar as "faltas".

      No entanto, o tal trio, por enquanto, faz geito ‑ como "bode expiatório". Ou seja, fica mal chamar nomes feios aos jogadores da equipa com que se simpatiza e é falta de desportivismo fazê‑lo à equipa contrária, logo como o trio de arbitragem é neutro, que se lixe, leva por ambas.

     O árbitro, que é o elemento mais importante do trio, é um tipo esquisito. Anda, de ponta a ponta do campo, com um apito na boca, ares de "mandão" e apita a tudo o que é jogador e, ainda não contente com isso, aos treinadores e demais pessoal dos "bancos" de cada equipa e até, imaginem, a um ou outro pobre cãozinho que, confiante na máxima de ser o melhor amigo do homem, decide esticar as pernas no relvado.

      Quando se chateia a sério, o árbitro apita mais forte e, consoante a fúria, mostra‑lhe um cartão amarelo ou vermelho e, neste último caso, manda alguém para o "olho da rua", o que provoca alguns mimoseamentos dos jogadores e do público ‑ sopapos, garrafas, esperas e outras manifestações de apreço, que obrigam o senhor do apito a protecção policial, não vão os adeptos mais fervorosos arrancar‑lhe algum órgão vital para recordação.

 

5. CONCLUSÕES.

     O futebol é doentio.

     O desporto faz bem à saúde.

      Logo,

          ou o futebol não é desporto

          ou a saúde anda pelas ruas da amargura.

     Razão tinha a minha tia Guilhermina, que entre uma "volta" de renda e um olhar recriminador sobre as cangalhas dos óculos, dizia: "‑ Mê filho, se nan tens gêto pra estudar ou casas com a filha do regedor ou toda a vida hás‑de dar pontapés na bola!". 

 

Macau, 12-12-1995

 

As Andorinhas

 

1. DEFINIÇÃO.

     Ave da ordem dos passeriformes, de que se conhecem cerca de 75 espécies. Encontra‑se praticamente em todo o mundo. Na Europa são aves migradoras que partem no Outono para a África Tropical ou Austral. Todavia as portuguesas, apesar da entrada de Portugal para a CEE, migram para Macau.

     Esta última espécie, como andorinha passeriforme que se preze, regressa sempre ao ninho. Mas, enquanto vem e não volta, submigra pelo sudeste asiático. Por isso mesmo são animais ao mesmo tempo adoráveis e práticos.

     Viajam, viajam e viajam e, no entretanto, fazem o ninho e cuidam das suas criancinhas. E voltam a viajar...

 

2. PORQUE VIAJAM.

     As andorinhas viajam porque gostam de viajar (e ninguém tem nada a ver com isso!). Viajam tanto que às vezes até confundem os locais visitados: é um "porblema" lembrarem‑se se fica na China, no Japão ou na Tailândia ‑ coisas de gente viajada!...

     Umas vezes dizem bem: "bonito, lindo, maravilhoso". Outras dizem mal: "o que mais gostei foi do regresso...". Mas, em todos os casos, "foi positivo, muito curioso, uma experiência engraçada...".

     Concretamente, porque viajam ninguém sabe ao certo. Por mania, por snobismo, porque não têm que fazer às patacas, para mostrar fotografias e filmes vídeo aos amigos e vizinhos invejosos? Sabe‑se lá! Viajam, porque viajam e pronto.

 

3. A ARRIBAÇÃO.

     As andorinhas sempre arribam, por definição. Temporariamente, para terem e cuidarem das suas criancinhas.

     Nas horas vagas (e por distração), confabulam longos cavaqueios sobre os males do mundo e, criativamente, apontam eminentes soluções, que só não surtem resultados porque o mundo não é só composto de andorinhas ‑ há, por acaso, também os pardais.

     Por vezes, sentam‑se às secretárias e utilizam as canetas para escrever umas coisinhas ‑ longas e penosas cartas aos amigos e vizinhos, para que estes (coitadinhos!) vivam um pouco da sua rica e variada experiência de conhecedores do mundo.

     Mas engana‑se quem pense que a sua vida na arribação é fácil. Múltiplos contactos sociais, cocktails, recepções, "sportswars de finesse", um rosário quase impossível de desfiar e só permitido a inteligências superiores, capazes de abarcar, ao mesmo tempo, tantos afazeres e preocupações.

  

4. OS INIMIGOS.

     Os inimigos são, obviamente, os pardais. De penas negras, são uma espécie degenerada e de mau agoiro ‑ sempre do contra!

     Olham de lado, chilreiam pelo canto do bico e mexem as orelhas desdenhosamente ‑ evitando, assim, mexer a cabeça para não denunciarem as suas maldosas intenções.

     Säo bichos esquisitos, matreiramente indolentes e acomodatícios, com uma predilecção pelas coisas vulgares e sem interesse.

     Enfim, os pardais só são inimigos das andorinhas porque viajam de 3 em 3 anos.

 

5. CONCLUSÕES.

     As andorinhas viajam várias vezes por ano.

     O pardal só viaja de 3 em 3 anos.

     O caixeiro‑viajante viaja constantemente.

     Vá um gajo encontrar a virtude no meio dos três!...

 

Macau, 11-12-1995

Telenovela

 

1. HISTÓRIA.

     A novela nasceu com Bocaccio (Itália, séc. XIV) e as "tele" com Nipkow (1883). Alguns anos mais tarde os brasileiros inventaram as telenovelas.

     "Inventaram" é modo de dizer, porque a telenovela existe, de facto, quase desde o aparecimento da humanidade, quando Adão e Eva se multiplicaram e começaram a aparecer os primos, vizinhos e conhecidos.

 

2. FUNDAMENTO.

     As telenovelas caracterizam‑se por não terem fundamento nenhum, o que desmente a teoria fundamentalista e deixa sem nexo a guerra Irão‑Iraque.

     Por não ser nenhum, o fundamento da telenovela funda‑se no quotidiano imaginário, sublimando os desejos e sonhos de uma maioria carenciada de libertar‑se do quotidiano real.

    A ausência de fundamento justifica ainda que a TDM possa ocupar boa parte da sua emissão com as ditas telenovelas ‑ uma chinesa, outra brasileira ‑, contribuindo assim, decisivamente, para a cimentação (escorada) da amizade brasileiro‑chinesa, já que a luso‑chinesa entrou em contagem decrescente.

 

3. VANTAGENS.

     A vantagem das telenovelas é que aparecem cinco dias por semana, coincindindo com os dias de trabalho.

     Assim, o pessoal depois da "faxina" normal espraia‑se no "sofazinho das finanças" e esquece as malfadadas horas de espessamento e endurecimento da pele causado por atrito continuado (para os menos cultos, o "callu vulgaris"), gozando, em delírio, as delícias idossincráticas de um comportamento fértil em plasmólise (para os mais cultos, o dicionário fez‑se para isso mesmo).

     Sendo cinco dias por semana, têm ainda a vantagem de podermos descansar ao fim de semana ‑ o que é muito bom, pois sempre se pode arejar a "cachola" lá para as bandas de "Hac Sá".

 

4. REPOSITÓRIO.

     A telenovela é um repositório de tudo o que as pessoas desejam e anseiam, por isso se assumem como actores "convidados".

     Mas, aprendem‑se coisas engraçadas: há adultos com cérbero de minhoca e criancinhas crescidas "pra chuchú", existem pais e filhos que se entendem e que "não batem certo", coexistem ricos e pobres com pretensão a ricos, fazem‑se jogadas de bastidor que são claras como a luz dos holofotes.

     E, sobretudo, formamo‑nos nas coisas do amor ‑ o que sempre é melhor do que aquelas cartas enfadonhas (tipo comercial) que, nos meus bons tempos, escrevia à namorada.

 

5. CONCLUSÃO.

     As telenovelas säo boas.

     As "boas" são o máximo.

     Viva a "MM", que não é quem estão a pensar, mas também não digo quem é, por cada um fica com a "sua" e já é tempo de inverter as estatísticas, para depois não se dizer, como o meu amigo: "se cada um tem direito a três, cadê as minhas?".

 

Macau, 10-12-1995

 

Tufões

 

1. DEFINIÇÃO.

     Tufão é o mesmo que ciclone, ou seja: turbilhão atmosférico de grandes dimensões. Os ciclones extratropicais são mais conhecidos por depressões extratropicais. Os ciclones tropicais são acompanhados de ventos muito fortes (ultrapassando por vezes os 200 Km/h), chuva torrencial e grandes massas de nuvens (com diâmetro entre 100 e 500 Kms). Ao ciclone também se chama "furacão" (no Atlântico e Pacífico Oriental) e "tufão" (no mar da China e Pacífico Ocidental).

     Portanto, há que desmistificar o "tufão", ciclonezinho depressivo que pouco mais faz do que soprar um arzinho quente e balofo acompanhado de alguma humidade que talvez resulte do seu próprio esforço de "bufar" às nuvens.

 

2. A QUEM ASSUSTAM.

     Assusta sobretudo os incautos recrutados à República que, por essa razão, muitas vezes não chegam a por os "butes" no Território ‑ o que é uma malvadeza desnaturada dos macaenses.

     Os mais informados ou que vencem a coragem encaram o facto com desportivismo: "Olha, também cá na terra há uns bentitos e não há‑de ser uma bentania mais fôurte que me há‑de abalar, carago!".

     Tretas! Ao sinal 3 do primeiro tufãozeco, "ala de butar fita na vidraça que o caraças do bento assobia que nem uma alma penada". Delapidam o "PA KAI" que é um ver se te avias e igam a "TDM" (de que só se lembram em alturas de crise e depois refilam ...) 24 horas por dia a ver se o raio do tufão vai para outro lado ou para "AI NÃO", porque se vem "ai sim" têm de "butar belas" ao Santo "Antôino" ou à Santa Bárbara ou a outro Santo qualquer que esteja de serviço ‑ não vá o São Pedro ter adoptado também o horário da função pública.

     Mas, voltando um pouco atrás, para não ficarem para aí com ar de parvos, esclarece‑se que o facto de ligarem a TDM 24 horas por dia não significa asneira. Para os desinformados, a TDM‑Rádio‑Canal Chinês funciona as ditas horas e quem ao fim de 2 semanas de chegada ao Território não fala chinês ou é bruto ou sofre de pancada.

 

3. O QUE FAZ O TUFÃO.

     Quase sempre, nada! Uma tristeza! "Bou‑me daqui embora sem ber uma coisa dessas, que barretaça!".

     De facto, assim é! Uma trampa de chuvada, umas balofadas de vento, que fazem um cagaçal danado nas janelas, sinais 1, 3... e o tufão (a porcaria de ciclone) vai para "AI NÃO". "Quando isto estava mesmo a precisar de uma barridela...".

     E volta tudo a ser como dantes! Chove "pra caraças, benta caté chateia e a humidade sobe até aos... tornozelos". "E lá tem um gajo que ficar a ber os álbuns de família e a beber uns copos e a fumar que nem chaminé da CEM", porque CHEOC VAN e HÁC SÁ não há...

     O que é uma parvoíce. Felizmente alguns, bons cidadãos, aproveitam para reuniões, onde se traça a táctica e estratégia da próxima jogada (de futebol, entenda‑se).

 

 4. CONCLUSÕES.

     Os tufões são ciclones.

     Os ciclones são depressivos.

     Os depressivos vão para "AI NÃO".

     Ai, não me digam mais nada!

 

Macau, 09-12-1995

 
 

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