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Prosa - 2002 / 2005

 

2005

 

Clementina em rima

 

     Clementina tinha um pequeno defeito. Era surda do ouvido direito. E o esquerdo era mouco. Ouvia muito pouco. Um som ao longe, como a maresia condensada num búzio, um zumbido crescente que hesitava como a sintonia de uma telefonia antiga. Um olhar macambúzio denotava a apatia pelas coisas da vida e nunca sorria. Quanto muito, levantava o lábio superior, arcado, grosso e rachado, como se dizia, em sinal de assentimento. O de baixo, fino e firme, nunca se movia. Hino silencioso a um rosto invulgar e a um corpo divino. Um tormento, de perder o tino, para quem a via nas sombras das casas caiadas, nas madrugadas ou ao fim das tardes. Aparecera já crescida, de cabelos loiros compridos, escorridos sobre as costas. Os mais valentes faziam apostas na taberna da aldeia, animados pela aguardente e copos de vinho. Mas nunca nenhum se gabara de se ter aproximado e, muito menos, de ter chegado à fala. Crendices, coisas do oculto, desfiadas, como os rosários das beatas, desfiguradas e chatas, rezando que a rapariga era anormal. O gato de Clementina – o Faial -, tosco e independente, ficava ausente dessas considerações, aconchegando-se no seu colo quente. Não a olhava de frente nem lhe apetecia analisar a dona, bem mais fofa e doce que a reles poltrona rasgada, com a palha a sair pelas frechas do coiro maduro, refastelado, aquietado pela ternura.

 

     Clementina tinha um primo, com quem pouco se dava, apesar de viver a dois passos de distância. Coisas da infância, das brincadeiras de médicos ou de problemas congénitos, porque o Chico também não batia bem. Era com desdém que o tratavam. O maluco do ferreiro que dava ao fole todos os dias, moldando machados, foices e enxadas, martelados na bigorna. A forma, mais do que a qualidade, era vaidade da profissão. Com ou sem razão, poucos lhe compravam essa ineficaz produção. Mas ia dando para o sustento dele e do pai acabado, que se arrastava de cajado apenas até à soleira da porta, onde ficava imóvel, a olhar para o ar, dizendo umas coisas impercetíveis, quase inaudíveis, vindas lá do fundo, meio a arfar, que terminavam sempre do mesmo modo: “O Mundo está quase a acabar!”. O Chico, quando se fartava da oficina, sentava-se ao lado do velho, num desvelo babado, descendo com ele ao Inferno da vida que os maltratava. À noite, sossegado o progenitor, sonhava com a prima. Era um sonho nublado, mas único alento, onde Clementina esvoaçava como uma fada, com a camisa de dormir ao vento. E ele via-lhe as formas, os seios, as pernas longas, quase o paraíso. Era quando o Dia do Juízo se abatia sobre a sua consciência baralhada, dando ao nada o sentido de pecado. 

 

 

     Num dia mais complicado, Chico passou-se dos carretos. Nem os amuletos pendurados a preceito compensaram o jeito. Meteu-se-lhe na cabeça que havia de ser aquele o dia em que teria Clementina. Peça a peça tudo dava errado. A foice, a enxada, o machado. O calor da forja atazanava-o, afogueando-o numa doidice inexplicável. Expectável, esqueceu o dano e traçou um plano. Sabia que a prima, ao fim da tarde, subiria a vereda que passava a poucos metros da oficina, para tratar das galinhas e das cabras. Já em labareda, ficou de atalaia, espreitando por entre os buracos das pedras de lava. Quando avistou Clementina, naquele andar, ao mesmo tempo provocador e puro, ficou da cor do carvão soprado pelo fole, o mole virou duro e todo ele uma fogueira. Deixou-a passar, seguiu-a sorrateiramente e esperou que entrasse pelo portão de madeira às ripas da propriedade. Dominando a vontade, esgueirou-se por entre as nespereiras e as figueiras, até que, de surpresa, como um felino transviado, saltou sobre as costas da presa, atirando-a ao chão. Mal lhe levantara as saias, num supetão, levou uma cornada do Julião. O bode corpulento, com chifres de veado, espetou-lhe as nádegas, rodou-o no ar, rasgando-lhe as carnes, e arremessou-o para cima de um silvado. Picado, sangrando, com as calças rasgadas, o Chico, apavorado, lá conseguiu fugir dali, meio aparvalhado. Nunca mais quis saber da prima e muito menos do Julião. E nunca mais se aproximou do portão, uns poucos metros acima da oficina.

 

     A verdade é que, poucos meses passados, comentava-se na aldeia o facto de Clementina, a prima feia do Chico chanfrado, numa mais ter sido vista. Há quem diga que pariu um monstro, com pelos, cornos, barbicha e até crista. Alguém estranhou também que o gato, caseiro e pachorrento, durma agora ao relento no quintal sob a latada e arreganhe os dentes por tudo e por nada. Coitado do Faial... E afirmam os mais sisudos: “Há naquela casa algo que não é natural!”.

 

Vilamoura, 30-06-2005

 

2004

 

Cores do desejo

 

     Estávamos a beber o pôr-do-sol de mão dadas. Era um daqueles dias em que era quase impossível dissecar as cores do fim das tardes de transição. De um verão decadente, mas ainda pujante, perante um Outono entorpecido pelo tempo e já antecipadamente sem esperança de afirmação. O sol era uma bola grande, pincelada por um pintor anónimo, de uma paleta com as cores chocalhadas  pelas mãos trémulas, num breve momento de lucidez entre duas garrafas de wisqui. Não chocava, mas quase doía ver o mar engolir o dia, assim. No horizonte, apenas ficou uma mancha multicolor que perdurou, metamorfoseando, escorrendo sobre o azul-escuro uma espécie de lava incandescente e, depois, suave como os beijos de amor.

 

     Os nossos corpos também se tinham deslocado. Num movimento de atracção. Da mão dada ao abraço. E, agora, com os meus braços sobre os seus ombros, apertávamos ambas as mãos ao centro dos seus seios. Forcei o vértice do triângulo, ficando com os mindinhos ao alcance dos mamilos. Tatei-os. Responderam, como se falassem por ela. Encostei o meu peito às suas costas, mantendo o resto do corpo afastado. Senti as nádegas dela a procurarem-me. Unimo-nos, colando os corpos. Ela bamboleava-se, esfregando o meu sexo. Ambos em silêncio absoluto, como se qualquer som ou gesto inadvertidos pudessem quebrar aquele momento mágico. As gaivotas faziam as preces do fim da tarde, numa evolução revolta e ruidosa, recolhendo-se algures nas rochas que suportavam o miradouro. O céu apagara-se. Vénus acendera uma pequena vela por entre um banco de nuvens não anunciado. A lua perdia-se numa timidez pálida.

 

 

     As minhas mãos, trémulas, já contagiadas pelo desejo sem retorno, desceram pelo seu corpo, acariciando-lhe as pernas, levantando, aos poucos, a saia. Inclinei-me um pouco sobre ela, sugerindo-lhe que se debruçasse sobre a balaustrada... O tempo foi curto. Um pirilampo errante rasgou o espaço, mesmo à frente dos nossos olhos. Ela voltou-se, erguendo o corpo cansado, amparando-se na minha cintura e depois nos ombros. Trocámos um olhar de penumbra, sondando brilhozinhos fugazes. Só então saboreámos o primeiro beijo de muitos que a noite ainda nos reservava.

 

Vilamoura, 13-08-2004

 

Exercício

 

     Pé, ante pé. Uma pausa. Novo avanço, tímido, perscrutando as margens. As flores procuram o sol. Os pés a terra firme. Não há diferença entre ele e as flores. Ele, no meio das flores. Caprichando nos pensamentos, vagueando os olhos pelo azul que firma o sol. Com os olhos húmidos de orvalho matinal. A meteorologia é inexacta. O arco-íris necessita de uma nuvem para mostrar o seu esplendor. O rio tem uma nascente e uma foz. A lágrima é intempestiva. Nasce dentro de um labirinto e escorre por caminhos soltos. Na lembrança, deixa um travo de sal na boca.

 

     Doíam-lhes os pés. Não que a caminhada fosse longa ou penosa. Não porque o odor das margens lhe retraíssem os movimentos. Não porque o horizonte se crispasse de tempestade. Apenas porque ignorava o percurso. E o desconhecido era um peso. Sobre o corpo, sobre a vontade. Amolecida pela neblina, retalhada pelos pedaços desencontrados da lógica e das emoções vulcânicas. Sem aviso, quentes, exuberantes. Lavrando sulcos, preenchendo vazios. Entornando sentimentos. Despertando desejos escondidos, queimando ilusões. Aquietando-se, finalmente em areia cinzenta que assenta em camadas sobrepostas. Poeira, que um dia, o vento mais forte, levanta, em redemoinhos breves, e transporta para novo cenário. Onde tudo recomeça. 

 

 

     Os espinhos da rosa contribuem para a sua beleza. Exaltam a sua singularidade. O desafio do quase inacessível. É o quase que proporciona tudo. Não o inatingível. Há sempre uma ponderação entre a conquista possível e o que sabemos inalcançável. Não é, necessariamente, a razão que nos embala, mas um sexto sentido que nos conduz. A lugar nenhum, muitas vezes. A oásis, nalgumas poucas. Não se explica, sente-se, vibra-se. Depois, quase sempre, sofre-se. Mas sem arrependimentos. A dor só é justificável quando valeu a pena. Senão, enganámo-nos, perdemo-nos num tempo qualquer, numa dimensão que nos escapou por entres os dedos. Naquele toque da pele que electriza, que arrasa o corpo, que quase mata e nos deixa, abandonados, à mercê da mais simples carícia.

 

     Há sonhos sonhados nas noites de insónia. Não são sonhos, são sucedâneos. No sonho profundo, raramente nos lembramos dos sonhos. Quase sempre, recordamos os pesadelos. Ele sonhava mesmo acordado. Com a rosa, com os espinhos. Talvez por isso sentisse que valia a pena ainda viver...

 Lisboa, 21-04-2004

 

De mãos vazias

 

Estou assim. De mãos vazias, escondidas nas algibeiras. Cerro os punhos sob o tecido gasto. Foi um fato outrora de alfaiate renomeado. É, agora, um trapo, sujo, desbotado, suado de histórias inúteis. As que vivi nos salões da glória, nos bares das noites sem rosto, alimentadas pela adrenalina dos sonhos breves. Foi a vida quase, a vida que pensava toda, na palma das minhas mãos.

 

Não recrimino ninguém, a não ser a mim mesmo. Esquecei, na voragem dos dias, as poucas coisas que cimentam e dão sentido à vida. Convenci-me de que a proximidade do poder e algum dinheiro eram tudo. O que precisava para mover influências, fazer uns quantos negócios lucrativos, ter as mulheres certas que sabem alimentar o ego de um homem com poder. Acreditava que o meu dinamismo e capacidade de insinuação, suportados por uma inteligência acima da média, ditavam o meu sucesso. Com uma pitada de sorte, claro, sempre necessária a quem vive em permanente risco.

 

 

     Agora sei onde falhei. Embalei em demasia e quando tentei travar já era demasiado tarde. Os freios tinham-se gasto, queimados pela ilusão da vida fácil. Testa-de-ferro. Sorri, na altura, quando me vi presidente do conselho de administração de uma empresa que não era minha. Embarquei nas aventuras que as engenharias financeiras proporcionam a um jovem executivo. Mercedes, motorista, vivenda em Cascais. Os convidados, gente importante, seduzidos e aquietados pelas orgias nocturnas, davam-me o estatuto de porta aberta no meio onde me movimentava.

 

     Quando me vi na barra do Tribunal, acusado de fuga aos impostos, lavagem de dinheiro sujo, falência fraudulenta e mais uns quantos crimes de que já nem me lembro, ainda pensei que os donos da empresa e os muitos amigos influentes poriam um fim rápido a um processo que só leva à cadeia gente sem meios para fazer valer justiça própria. Enganei-me. Ninguém. Gastei tudo o que tinha com os advogados e em vão. Condenado a 10 anos de cadeia, vi-me, de repente, no meio de cadastrados de delito comum. Deixei a Penitenciária ao cabo de cinco longos anos, por bom comportamento. Porque não falo do tempo que lá vivi?... Simplesmente, porque não quero, nem posso. Já não tenho ego, mas custa-me aceitar que... deixei de ser homem.

 

     Também, sabendo que vou morrer em breve, que interessa para a minha memória saber-se que fui violado, que contrai SIDA, que... Nem interessa o resto. Curiosamente, nada disso me importa. Nem a morte. Que seja breve. Que me leve deste vazio. E não tenho passado para redimir o meu único pecado – a vida que nunca vivi! 

Lisboa, 16-04-2004

 

Amor sereno

 

     Não há amor sereno. Ou é ou não é. Pode ser amizade, respeito, acomodação ou o que quiserem chamar à quietude de uma relação. Mas não é amor. Então, um sábio emproado, de científicos princípios e com uns tiques de estimação, dirá, do alto da sua cátedra circunstancial, que estou a confundir amor com paixão. Provavelmente nunca saboreou nem uma coisa nem outra. Ou perdeu-as num caminho que não foi capaz de trilhar. Com medo de entrar nas veredas de silvas e urtigas, terra batida, pedras soltas, onde os malmequeres só mostram a beleza a quem a procura com o coração. É quando a razão vacila e os olhos mentem, mas o ser aceita. As certezas morrem ao primeiro olhar furtivo, ao leve tocar dos lábios. E dão lugar ao esplendor do momento. O que vale a pena viver. Que vai perdurar sobre todas as quietudes e serenidades.

    

     O sábio irá replicar, usando os mesmos argumentos. Porque me falta paciência para discussões estéreis, digo-lhe que não estamos sintonizados na mesma frequência. Há espúrios laterais que interferem com o fio do pensamento. Falo de amor, meu caro, entre homem e mulher, apenas e exclusivamente. Ciente da profundidade do seu vasto conhecimento, o homem vai insistir nas tempestades da paixão e no mar calmo do amor. No desassossego e na calmaria. E eu, já cansado de o ouvir, mas condescendente, ainda lhe tentarei explicar que isso só é dissociável quando se adquiriu definitivamente a condição de vegetal. O homem não entenderá e olhará para mim como para um espécime raro, que terá vontade de dissecar para satisfazer a sua curiosidade científica.

 

 

     É simples, meu caro. Falo em sentido figurado. Uma metáfora que poderá não ser feliz, mas que significa a rendição ou, se preferir, a abdicação. A impotência para viver mais paixões. Então, só então, me quedarei na quietude do amor sereno. Na contemplação dos momeÉ meu neto, claro!

ntos desfigurados pela bruma do tempo. Será a minha história, a que já não terei tempo de escrever, mas de que não me vou arrepender nunca. Serão os meus dias de glória, talvez acrescentados, imprecisos, confundidos, mas saborosos, inesquecíveis. Cada beijo, cada carícia, tudo. E, para seu espanto e, eventualmente, grave dúvida científica, dou-lhe, finalmente razão: fui sempre irracional. Porque acho que a razão não deixa viver. Mata, em nome de uma objectividade que não existe. E eu quero viver ainda. Com amor e paixão, com todos os sentidos. Bem despertos.

 

Lisboa, 08-03-2004 

 

Oh, Seissão!

 

     Conceição ou Seissão, chamada assim pela família e, depois, pelo marido, um empreiteiro de experiência feito, desde moço de carga. Coitado, nem a quarta classe acabou, porque foi forçado a meter aos ombros as pedras de basalto e as mãos na cal e, mais tarde, no alcatrão e no cimento. O rapaz já era velho aos vinte anos, quando casou com a Seissão. O Amílcar falava assim, de cima, pausadamente, dando às coisas banais um tom de importância drástica. Desdenhava dos fazedores de casas, com quem aprendera o ofício, porque não evoluíam. Tinham ficado no passado. Ele não, lia revistas que vinham da Capital, estudava à sua maneira a forma de adaptar à Região os modelos das mais belas construções. Era mesmo entendido em decoração, na combinação das cores, na utilização dos melhores e mais adequados materiais para cada caso. Já então trabalhava por conta própria, desenhando projectos e vendendo ideias e mão-de-obra. Arrebanhara uns quantos colegas de profissão que, por sua vez, recrutavam os trabalhadores necessários, pagos ao dia, de sol a sol, mesmo que o céu, quase sempre como o tecto abaixo da ponta aguda da terra, escondesse o astro rei.

 

     O terramoto derrubou muitas casas. O Amílcar expandiu o negócio. Reconstruiu uma dezena de freguesias e construiu em outras tantas. Até os antigos patrões se associaram, em subempreitada, vergando-se ao génio empreendedor. Apesar da criatividade, as casas erguiam-se com sinais de um mesmo padrão. Iguais na forma, nos azulejos, nas loiças, no equipamento de cozinha. Bem, as cores, interiores e exteriores, podiam ser escolhidas, entre o branco, dois tons de azul e um creme deslavado. É que ele comprava por atacado, pelo preço mais baixo. Aprendera com um caixeiro-viajante de que se tornara amigo. E os donos das obras estavam mais preocupados em ter de novo um abrigo. Por vezes, achavam até que eram modernices a mais. Gente simples, sem gostos refinados. Abertas à mudança, mas sem grandes entusiasmos. Quanto à habitação uniformizada, tudo bem, tinha sido sempre assim, semelhante no passado, idêntica no presente. Porque o futuro que esperava por todos era igual.

 

 

     Ficou conhecido, o Amílcar. Um homem às direitas, honesto. Casa que construísse não haveria terramoto que a viesse a derrubar. Podia ser careiro mas não poupava no cimento e nas ferragens. Aliás, o coeficiente de cagaço faria inveja a qualquer engenheiro civil, por mais maduro que fosse. Em terrenos da família, construiu uma mansão de dois andares, coisa rara para aquelas bandas. Acoplou-se-lhe uma garagem e um anexo para equipamentos e ferramentas. Quando lá fui, tive direito a uma visita guiada, com explicações entusiásticas de quem se sente no centro do universo, do seu pequeno universo. Mas legítimo, porque é tudo o que se tem, que temos para nos sentirmos realizados. Por isso nada disse. Nem à escassez do espaço dos corredores e de cada divisão ou da decoração, à qual, para meu gosto, nem daria o beneficio da dúvida. Mas é assim, cada um vive feliz com aquilo de que se rodeia voluntariamente. O que pode não significar uma felicidade esclarecida, mas pouca importância tem para o caso, até porque quem é esclarecido parece ser mais infeliz na proporção inversa. A vida é mesmo complicada...

 

     O casal vivia feliz e os resultados iam aparecendo. Uma vida quase de luxo para a aldeia junto da estrada, perto pela televisão, mas perdida num tempo qualquer que já não fui capaz de situar. Dois rebentos sãos, um rapaz e uma rapariga, espertos e bem alimentados. Tudo corria bem, até aparecer a “alemoa”. Uma mulher, que vestia de cabedal, loira, amiga da cerveja morna. Desasara ali, de repente, com o marido, entrevado, talvez buscando alguma milagrosa cura dos ares da montanha e do mar fundidos num elixir mágico. A coisa começou pelas obras. Depois foram as cervejas ao fim da tarde e, claro, seguiu-se o resto. O papel do marido neste triângulo ficou por explicar. O que é certo é que o Amílcar mudou-se de armas, bagagens e ferramentas para casa dos “alemões”. E a Seissão ficou com dois filhos nos braços e uma dívida para pagar ao ex-marido. Pois, o valor de metade da casa, que o homem não era de perdoar nem à família. Ah, ela lá ficou com um carrito em segunda mão, que, segundo ele, carros novos nas mãos de mulheres é suicídio escusado. Para o automóvel.

 

     Não sei como acabou a novela. Nunca mais ouvi falar do Amílcar e muito menos se já se habituou à cerveja morna. Se a “alemoa” está gorda e anafada e até se já despachou o marido por uma das muitas ravinas da costa. Não sei também porque contei esta história, mas apetece-me terminar com um lamento: “Oh, Seissão!”.

 

     Lisboa, 11-02-2004

 

João Mirrança

 

     João Mirrança, o gajo da cagança, gabava-se de feitos inauditos, por vezes tão inatingíveis que a vizinhança conjecturava se o homem estava no seu perfeito juízo ou transviava ao sabor das fantasias das noites recolhidas, à luz do candeeiro a petróleo. Bastava uma meia dúzia de tigelas de barro curtido, bem cheias do produto das uvas criadas pela lava, que o João ganhava asas e, com o furor das cagarras, voava pelo espaço da imaginação. Atravessava as intempéries das noites mais negras e acoitava-se na mama do Pico, onde socorrera pelo menos uma meia dúzia de continentais afoitos, ou então esbracejava nas águas tumultuosas ao largo da ilha, ora rebocado por um cachalote, no laço da corda que disparara da celha do bote, ora salvando o Jacinto, o Inácio ou o Carolino, consoante os dias, depois do barco carregado de bonitos se ter afundado à vista da Prainha do Galeão. Para já não falar da vez em que teve mesmo para morrer, quando andava à caça de lapas e polvos, para os lados de S. Mateus, e ficou enrodilhado nas algas de uma caverna para onde foi empurrado com a força da onda. Só a Virgem Maria o salvou, que ele bem viu a sua imagem, lá no fundo do escuro, brilhante. Sorriu-lhe e, com um gesto de mãe protectora, empurrou-o para fora. Até os bofes lhe iam saltando quando a cabeça saiu fora da água. E quando subiu à rocha mais próxima ainda as pernas lhe tremiam que nem varas verdes e os dentes chocalhavam que nem castanholas. Desde então que não passava mês que não fosse ao local colocar um ramo de hortênsias bem frescas e rezar um terço completo. 

    

     O Mirrança era viúvo habituado à vida a sós. Bem, diziam as más-línguas que nas outras noites em que não se arvorava em contador de histórias, enquanto as cartas da sueca lhe iam escorrendo pelos dedos calejados da enxada e do arpão das baleias, passava as noites na adega, bem perto do porto, na companhia da Albertina, que tinha idade para ser filha dele. Tal mãe tal filha, acrescentavam. A velha agora nem saia de casa, mas nos bons tempos dela, esgueirava-se pela noite, como uma gata, só detectável pelos olhos esverdeados e apenas quando a maré estava cheia, fazendo uns favores avulsos, talvez razão de sobrevivência, mas há coisas que o falatório não perdoa, alimentando e acrescentando. Coisas das mulheres de farpa, tecendo colchas, naperons e toalhas, sobre a esteira de palha. Entretenimento, à falta de rádio e, muito menos televisão, que os serões puxavam pela língua. Mas nem era por mal, apenas porque se tinha de falar de alguma coisa e os horizontes tinham a distância dos limites da freguesia. Acabavam sempre com uma espécie de acto de contrição: - Que Deus nos perdoe, porque cada um sabe de si e Ele de todos. Esta preocupação de limpar os pecados da noite não se aplicava fora do espaço geográfico, porque para além de São Caetano, as apreciações acabavam em piropos bem mais cruéis, embora subentendidos em frases inacabadas. Era a solidariedade de vizinhança.

 

 

     Com um metro e noventa, uns cento de dez quilos de peso e uma força bruta a toda a prova, o João impunha o respeito de todos. Na última avaria que ficara na memória da taberna, levantara um quinto sem vinho com os dentes. E ainda deitou para fora um sorriso, largo e trocista, naquele rosto mal barbeado, que só via navalha, por punho próprio, ao cabo do banho de fim-de-semana, numa celha de madeira com espuma de sabão azul poupado ao centímetro. Gente como ele faria a cadeira de barbeiro e de dentista do Jacinto criar bolor e confiná-lo à criação de ovelhas e carneiros, remoendo, no estio, as ervas da ribeira que confinavam com o balcão da casa. Por vezes, os mais novos, já com grãozinho na asa, mas sempre venerandos perante o santo sem andor, discorriam da bebedeira célebre na noite da Festa de S. José. Depois de despachar dois garrafões de cinco litros de tinto, não atinava em andar direito para o caminho de casa. Voltou-se e foi de marcha à ré, ruminando: - Se não dá de frente, vai de costas. O Mirrança não comentava, esboçando apenas um leve sorriso, com os lábios grossos gretados. Não estava para desfazer o mito, mas não tinha sido bem assim. Apenas tinha bebido um garrafão e ficara naquele estado porque a porcaria do polvo na tasca do Garcia estava salgado e com tanto picante que quando se deu conta já tinha bebido mais que a medida para a comida. É que era tudo uma questão de equilíbrio entre o tempo, o que se come e bebe. Um segredo que não ia dar de bandeja para aqueles putos de leite, que tinham de aprender à custa deles. Mas agradava-lhe ser alvo das atenções. Com respeito, claro. Porque quando pisavam o risco eriçava a carranca e o assunto morria de morte matada. Não era de violências, mas também não era homem de levar desaforos para casa. E todos sabiam disso, o que facilitava as coisas.

     

     Na tarde de um Sábado nublado de Dezembro, quase em vésperas de Natal, um alvoroço percorreu a aldeia. Constava que o João Mirrança ia casar com a Albertina às escondidas. Era coisa do padre, que teimara em legitimar aquela relação pecaminosa aos olhos de Deus e dos homens. Isto é, mais das mulheres da freguesia, que os homens não desperdiçariam, pelo menos, um pequeno pedaço. Apesar da hora tardia, juntaram-se alguns magotes nos caminhos transversais ao da Igreja, esgueirando-se na escuridão. Por volta da meia-noite lá apareceu o António da Santa e o Francisco Gracias, com as mulheres, e, passados uns dez minutos, os noivos. Todos em passo de corrida, batendo os sapatos na terra e levantando uma pequena nuvem de pó avermelhado, coado por umas réstias de luar rebeldes. A cerimónia nem durou meia hora. A espera nem deu para apertar os casacos, que o entusiasmo dos espreitas superara o frio. Quando os padrinhos e o casal subiram a estrada, já em passo comedido e conversadeiro, irrompeu uma salva de palmas. O Mirrança, no seu porte altivo e, agora, tanto quanto a lua mais afoita deixava antever, ainda mais sisudo, parou. Perscrutou as margens, indagou dos presentes, com um olhar de lobo sem alcateia, e embicou para o Fontes, a quem, se fosse à luz do dia, seriam detectáveis todos os sintomas de uma apoplexia ou de um ataque cardíaco iminentes. Mas o João estava feliz. Abriu os braços e no abraço ao Fontes abraçou todos.

     

     A aldeia dormiu então em paz. O João Mirrança não mais contou estórias de embalar.

 

Lisboa, 02-01-2004

 

2003

 

Nunca digas Adeus

 

     Nunca entendi porque deixastes aquele adeus no ar... Porque não foi nem uma despedida nem um apelo à reconciliação. Foi mais um daqueles teus gestos sem expressão, ilegíveis na forma e simbologia. Enigma, dirias tu. Incompreensível, digo eu, ainda. É por isso que nunca nos entendemos. Sempre tivemos leituras diferentes dos mesmos factos, das mesmas imagens, das mesmas coisas banais.

    

     Não te procurei nem tu te deste ao trabalho de discar o meu número de telefone. A princípio, retirava o telemóvel do bolso na esperança de me teres ligado sem me aperceber. Mas nada. Então, gostaria de te ouvir, de entender a tua despedida abrupta e sem sentido. Era capaz de esquecer aqueles momentos que me crispavam a voz, fazendo-te mais uma cena de ciúmes, à saída do nosso bar, como o havias baptizado. Só que não era nosso, era teu. Dançavas com os teus amigos, enroscada como uma cadela no cio. Eu ficava a ver, furioso, condescendente, amorfo, com os copos de whisky que iam desfilando, uns atrás dos outros.

    

     Naquele dia..., já nem sei ao certo. Ou tinha bebido demais ou de menos. Lembro-me apenas que fui mais incisivo ou mais lúcido que o habitual. Tu nem me deixaste acabar. Abriste a porta do carro e acho que voltaste para o teu bar. É a última imagem que recordo de ti. O adeus, compondo o casaco de pele duvidosa sobre os ombros, e os passos acelerados e barulhentos sobre o empedrado da rua. Arranquei logo, chiando pneus, como se me quisesse vingar ou libertar, nem sei do quê.

 

 

     Estive tentado a procurar-te, mesmo que te fosse encontrar no nosso, teu, bar, aninhada com outro. Foi quando as noites me ensinaram o peso e o drama da solidão. Voltava-me na cama e não tinha mais nada depois de mim. Não havia corpo quente, nem vestígios do último coito. Lembras-te que me voltavas as costas, aconchegando a cabeça no meu braço e colando o teu corpo ao meu? Adorava dormir assim. Quase sempre, o meu outro braço rodeava-te e a mão acariciava a tua vagina ainda húmida. E quantas vezes recomeçámos? Tantas...

     

     Demorei muito a recompor-me, a substituir-te. Mas consegui vencer-me, ultrapassando-me. Entendi, por fim, a cegueira que me tinha tomado, sublimando a humilhação a que me sujeitaste. Redimi-me mais dos meus pecados dos que me fizeste cometer. Senti-me eu de novo, nas fraquezas e virtudes que fazem a diferença e me dão alento. Fiquei sem nada mais para te dizer. É por isso que não vou responder à tua carta mais do que isto: “Sinto que tentaste ser profunda, reparadora. Impressiona-me a coragem com que tentas explicar os hiatos do nosso entendimento, as devassas da nossa relação. Desculpa, mas isso não me diz nada, agora. Adeus!”.

 

Lisboa, 30-11-2003

 

Cinquenta anos

 

     Do alto desta cabeça, ainda pensante, meio século de história vos contempla. E a cabeleira ainda está farta, apesar de umas entradas jeitosas que prolongam a testa, num sinal óbvio de uma razoável inteligência. As orelhas, um pouco saídas, parecem perfeitas debaixo do cabelo comprido. O nariz, visto com mais atenção, apresenta as sequelas de uma aterragem de infância contra um muro de cimento. Lábios carnudos, que dizem sensuais, ainda estão prontos para muitos beijos, quentes e molhados. A cara está mal tratada, condescendo, com algumas rugas e buracos. Talvez com um tratamento de beleza aplicada... Mas o que está péssimo são os olhos. Não me refiro propriamente ao seu tamanho, pequenos, castanhos, penetrantes quando olham com gosto, mesmo debaixo dos óculos de ver ao perto – coisas da PDI (para quem não saiba e antes que diga asneiras, a sigla traduz-se por Porcaria Da Idade). Pois, não são os olhos, mas as olheiras. Não gosto delas. Chateiam-me e indispõem-me logo pela manhã. Já por umas três vezes comprei pepinos, mas esqueci-me de lhes usar as rodelas e acabaram por apodrecer no frigorífico. O resto do corpo até está, visivelmente, aceitável e funcional. A barriguinha, embora não muito saliente, é resultado apenas da preguiça. A natação e alguns outros desportos foram ficando pelo caminho. A favor do sofá ou desta cadeira onde escrevo quase todas as noites. A inscrição, acrescida de seis mensalidades, num Ginásio com piscina, ficou-se pela exibição do cartão aos amigos, mostrando a minha força de vontade em manter o físico. Mas isto tem de mudar... Bem prega Frei Tomás!

 

 

     Mas porque me descrevo desta forma se não preciso de vender nada e muito menos a imagem? Não faço ideia e não sou também de fazer balanços. Apeteceu-me falar da idade e pronto. Dos cinquenta anos que não me apeteceu comemorar. Para me dizerem que até estou bem conservado?! Que é o mesmo que dizer que apesar da idade... etc.. Aos sessenta, talvez venha a admitir tudo, mas agora não estou preparado. Sinto-me ainda muito jovem e activo para aturar coisas de velhos. À minha volta só falam da reforma e do dia em que não vão ter nada para fazer. Eu também quero a reforma, mas para fazer mais coisas, aquelas de que gosto realmente. Recuso-me a admitir, nem me passa pela cabeça de cabeleira farta, que os cinquenta sejam o começo do fim. Para mim é o princípio. De dar asas à imaginação e rebeldia que nunca me deixaram crescer.

 

Lisboa, 12-08-2003

 

Tio Traquitanas

 

     O Tio Traquitanas vivia no meio de um armazém de lixo. Opinião generalizada dos poucos a quem era deferido o privilégio de entrar nos seus espaços perdidos nos arredores de Caneças. Uma casa térrea de azulejos desencontrados, com cozinha, uma pequena sala e um minúsculo quarto de dormir. Ladeava-a um pequeno espaço cimentado pela frente, acessível por um portão de ferro forjado, descascado da tinta, passagens laterais estreitas e, nas traseiras, um empedrado de lajes rachadas, divididas pela erva espontânea. Delimitava o santuário – era como ele via o seu refúgio -, um muro alto, à altura da casa, de bocados de pedra sobrepostos, ajuntados por caliça esboroada. Se cor tivera, perdera-a. Agora, o cinzento e o negro do tempo e o verde dos tufos eram o selo de garantia da antiguidade genuína.

    

     Talvez fosse melhor chamar-lhe oásis, porque era uma minúscula construção no meio de um imenso matagal. As terras que fora vendendo ao sabor da voracidade de investidores imobiliários que haviam perdido o apetite ou faziam ainda boquinha para grandes empreendimentos. Só lhe restava o coração da grande propriedade, retalhada, e esse bocado não era negociável, porque não tinha preço. Perante as insistências mais ferozes, acabava com a conversa dos doutores de um modo singelo: “- Quando eu morrer e como não tenho herdeiros, podem fazer disto o que quiserem. Até lá, não vale a pena insistirem!”. E eles desistiam. Iam embora descorçoados, mas, ao mesmo tempo, indagando-se sobre aquele homem. Era um tipo rico, que vivia encafuado quase como um mendigo. Após a morte da mulher, já ia para uns vinte anos, loteara o terreno e começara a vender, sem pressas, quando entendera ser a altura mais certa e à melhor oferta. Arranjara um corrector de confiança, aplicara o capital e, aos poucos, multiplicara-o. Era um caso de inveja. Só ninguém entendia porque vivia assim, isolado, fazendo questão de ignorar o Mundo.

           

     Com quase setenta e cinco anos, António de Jesus – há muito o Tio Traquitanas -, vivia sozinho e feliz. Desde que a tia Matilde se finara, uma mulher das proximidades, contratada a peso de ouro, atendendo à função, velava para que nada lhe faltasse, preparando diariamente as principais refeições. A Felismina era então uma rapariga, solteira e sem namorado, empurrada por uma família numerosa para serviçal. Depressa entendeu como lidar com um homem rabugento, exigente e de meias falas. Submeteu-se, sem reservas, e apaixonou-se pela calada. Agora, com quarenta e seis anos, ainda elegante nas formas, não perdera a esperança de ser mais do que a mulher-a-dias. Sempre houve falatórios, mas também a habituação própria das situações duradouras. E a realidade era bem diferente. Apesar de algumas discretas insinuações, ele não lhe permitia qualquer veleidade. Num tom indiferente, seco e, por vezes, quase grosseiro, afastava qualquer aproximação. Após o jantar, a “boa noite”, bem soletrada, fazia entender que eram horas de ela recolher à sua própria casa. Pouco lhe parecia importar se a noite já ia densa, se a chuva a iria causticar pelo longo caminho a percorrer a pé, se haveria perigos que a espreitassem. Nada. Pagava bem, ela prestava o serviço em condições aceitáveis e ponto final. O resto não era nem tinha de ser da sua conta e responsabilidade. E, com o passar do tempo, ela também desistira de qualquer aproximação, assumindo a sua condição laboral.

 

 

     Um coração de ferro, de sucata. O homem juntava tudo o que encontrava. Por vezes à beira da estrada, introduzindo-se, à socapa, em terras abandonadas ou, em última instância, regateando preços. Depois do pequeno-almoço, pegava a Dyna e ia por aí fora, sempre buscando, com o faro de um perdigueiro treinando à ferrugem. Desde loiças de porcelana, algumas tocadas pela nobreza ou mesmo por reis e príncipes, até computadores esventrados, semi-destruídos. Peças e componentes de automóveis, artefactos agrícolas e de pesca. Bicicletas, triciclos, brinquedos de madeira e em metal. Tudo espalhado à volta da casa e, dentro dela, os exemplares mais importantes ou queridos. Algumas mobílias e quatro jarrões chineses, estes empalhados debaixo da cama, eram as preciosidades do seu tesouro. Com excepção da cozinha, onde tomava as refeições, o resto da casa era um autêntico museu atulhado, sem lógica nem nexo, ao sabor do sucesso das expedições. A aventura era ali mesmo. Um circuito de gincana, tentando adivinhar a origem e utilidade de cada objecto. Um sorriso de desalento, em conclusão, como se nenhum valesse o tempo de um olhar mais atento.

           

     Mas o Tio Traquitanas tinha uma outra leitura. Cada coisa tinha uma história, conhecida ou imaginada. Fora criada, antes de mais. O criador, inventor inspirado, era uma espécie de deus, colocando o seu engenho ao serviço de todos. Mola da evolução, garante do progresso, aplicando ou mesmo antecedendo conhecimentos científicos e novas tecnologias. A mente humana era a maior maravilha do Universo. Depois, as pessoas, que usufruíram da invenção, haviam, de certeza, melhorado a sua qualidade de vida. Por mais insignificante que tivesse sido o objecto ou a mudança provocada por um nova ideia, teria ocorrido uma satisfação individual e ou colectiva, quanto mais não fosse pela posse de algo diferente, que quebrara o quotidiano. Claro, condescendia também, que a disponibilização comercial das criações não estava ao alcance de todos, mas o simples facto de as puderem conhecer já era, só por si, uma espécie de alento para a vida.

    

     Há gente assim, que vive nas memórias das coisas, poderiam congeminar os turistas de ocasião. Mas, num sorriso forçado, iam acarinhando o velho, deixando escapar uma ou outra referência aos seus discursos de filósofo. E era mesmo o que o Tio Traquitanas parecia. Ao fim das tarde de melhor tempo, sentado num canapé estoirado, oriundo talvez de uma nobreza pesada e com gota, ficava-se a olhar, embevecido, os pássaros que se haviam habituado a frequentar o bebedouro que colocara por dentro de um dos lados do portão. Algumas dezenas de andorinhas dispunham de ninhos nos beirais da casa. E, na Primavera, chilreavam, num movimento contínuo, arrancando um sorriso vago àquele senhorio quase imóvel. De quando em vez, o Tio Traquitanas tirava o chapéu de palha amarelecida e coçava a cabeça, como se o espantasse ou compreendesse um desenho mais arrojado no ar ou o piar incessante das crias, na sua voracidade de crescimento. Ferrava de novo a carranca com Felismina a anunciar o jantar. Como se o despertasse de um transe hipnótico, de um sonho que lhe levasse a mente nas asas das aves, sabe-se lá para e por onde. Só ele sabia, se soubesse. Na maior parte das vezes, se calhar não saia dali mesmo. Entranhava-se em si, adormecendo pensamentos, desfocando o olhar. Hibernando, como quem esgotou as reservas para sobreviver.

    

     Afinal, o Tio Traquitanas parecia mesmo vazio. Atulhava-se exteriormente para compensar o que não sentia dentro de si. Nem dor nem ódio, nada. Apenas aquela paixão fictícia pelas coisas dos outros. Na verdade, se lhe levassem tudo aquilo dali, pouco se importaria. Só tinham valor quando as podia mostrar a alguém e proferir a prelecção filosófica de sempre. Mas a sua paciência tinha limites curtos. Por isso, só em ocasiões especiais, quando tinha pachorra, se disponibilizava à visita guiada. Vivia assim, exteriorizando vida, mas morto por dentro, enfadado com os outros e com o Mundo. Sempre fora assim. Órfão, ainda puto, comera o pão amassado pelo diabo. Desenrascara-se em muitos ofícios, até ter o seu pé-de-meia. Fora comprando terras que ninguém queria, vendera produtos de toda a espécie, trabalhara cada vez mais, até que um dia, ao ver a mulher descer para a terra que era de todos, entendeu que chegava de esfalfa. Era altura de gozar a vida até que a morte também o levasse.

           

     Para ele desfrutar da vida era apenas não trabalhar. Colher tarecos não era trabalho, era divertimento. E estava-lhe no sangue juntar coisas, aumentar património, fosse qual fosse. Sabia que tinha muito dinheiro, correndo pelos bancos. Mas não lhe passava pela cabeça qualquer extravagância. Aquilo era a sua reforma. E depois, sempre podia haver uma doença... Dar, pagar vícios a malandros, fossem da obra paroquial, da junta de freguesia ou de outros mafiosos quaisquer, estava fora de questão. Nunca amolecera nesta atitude e, depressa, todos entenderam que dali não levavam nada. Mas a idade ia pesando e o canto da cigarra cada vez mais soturno. Certo dia, o Antunes, o corrector, lembrou-lhe que era altura de pensar em fazer testamento, não porque perigasse a sua saúde de ferro, mas simplesmente porque nunca se sabia o que podia acontecer de uma hora para a outra e depois os bens iriam parar às mãos do Estado...

    

     Tio Traquitanas, pensando durante uma semana seguida, apenas pelo final das tardes, resolveu seguir o conselho. Sem família, resolveu deixar a sua fortuna repartida pela Felismina e pelo Antunes, mas este, só porque lhe havia lembrado a morte, apenas com direito a vinte por cento. Nem pensou, por um simples segundo, que a mulher que lhe dedicara vinte anos da sua vida merecesse uma quota maior. Teria feito o contrário se tivesse sido ela a falar do assunto. Era uma vingança que lhe arrancava um sorriso de quase felicidade. Nem sabia porquê, mas talvez tivesse a ver com a sua própria forma de vida. Bem vistas as coisas, até estava a fazer alguma justiça. O tipo da cidade, habituado a boa vida, cheio de manias e gostos caros, devia pensar que o levara na conversa, mas estava muito enganado. Quem lucrava mais era a rapariga da aldeia, sem posses nem pretensões, a quem sairia a sorte grande. Nunca lhe agradando a ideia de dar, depois de morto também não podia fazer nada, a não ser isto. E sorriu de novo, imaginando a cara deles ao ouvirem a leitura do testamento.

    

     E morreu. Num dia triste, mais do que outros, pelo menos para os pássaros que se aperceberam do vaivém desusado. Com um funeral discreto, o Tio Traquitanas abandonou este Mundo como para cá viera. Dos poucos acompanhantes à última morada, alguns repararam que Felismina não só não chorava, como parecia rejuvenescida. Pareceu-lhes estranho, mas nestas situações as pessoas ficam diferentes e depois, não se pode perder muito tempo a congeminar nos momentos que lembram a nossa própria morte. Um copo na tasca do Jacinto, mesmo na esquina do Cemitério, abafou qualquer manifestação cerebral que não fosse o habitual e salutar despique futebolístico.

    

     Poucos meses decorridos sobre a morte do Tio Traquitanas, a aldeia ficou assombrada com a notícia. Felismina, que parecia não fazer mal a uma mosca, e o gajo que tratava dos dinheiros do velho, um tal Antunes, iam casar. Sim senhor, tinham feito a cama ao Tio Traquitanas. Ai se ele soubesse disto, até dava voltas na campa. Que descaramento!... E a vida continuou, criando dois novos-ricos que, provavelmente, souberam viver a vida melhor que o criador de tanta riqueza...

 

Lisboa, 30-05-2003

 

Refúgio secreto

 

     Quando chegar o momento – aquele que resulta do amadurecimento dos frutos, por acção da natureza -, convidar-te-ei a visitar o meu refúgio secreto. Abrirei a porta dos meus segredos e poderás mergulhar no meu íntimo, descobrindo que, afinal, o pequeno sacrário que os guarda está quase vazio. São umas poucas relíquias, pequenas e sem graça - pensarás, sem o dizer por pena ou condescendência. Mas eu entenderei o teu olhar desiludido, de quem esperava grandes revelações.

    

     Tive uma vida cheia de quase-nadas e, ao mesmo tempo, de quase-tudos. Nunca soube dosear extremos que aniquilam e glorificam o eu. Há como que uma borracha que apaga os picos da existência, nivelando-os pela mediania. Uma operação estatística que desfigura a realidade. Se nos faz esquecer os momentos menos bons, deixa-nos, desgraçadamente, com uma depressiva sensação de vazio. Ouço cantilenas dos velhos mais velhos e dos que, como eu, na penumbra da idade, repetem, vezes sem conta, histórias rocambolescas e monótonas, como um elixir da vida a que se agarram. Vivem do passado, porque desistiram de viver. Eu projecto-me no futuro, mesmo que seja curto, irremediavelmente perdido.

    

     Acho que não entendeste nada desta lenga-lenga. És jovem ainda, despida destas contradições da gente madura. Acho graça que não me consideres assim. Eu próprio duvido do meu meio século de existência. Se queres mesmo saber, agora é que me apetecia recomeçar parte do ciclo da vida. Escolheria o quinto ano do Liceu e por aí fora, até à Faculdade. Apagaria não os erros, mas algumas omissões que me pesaram ainda mais. Faria algumas loucuras que a minha timidez, então, bloqueou. Tininha, Zizi... A memória não perdoa as perdas do corpo e muito menos das emoções não vividas.

 

 

     Ficaste com ciúmes, agora? Não há razão. São apenas notas do passado de um quase-velho. Na verdade, não passam de um desabafo provocador, instigando a tua fúria breve. Sei que a vida tem sentido. Mexer ou, pior, remexer, o passado é desfiar rosários com contas perdidas. Nunca se acaba o terço, simplesmente porque o tempo é inexorável. Devagar, depressa, corre sempre. E, no mesmo espaço, muda tudo. Não penses que, afinal, cristalizei nas memórias perdidas, apenas me revisito, de em vez em quando, mais por instinto do que por necessidade. É um mecanismo que ninguém pode desactivar. Aborrece-me mesmo quando volteio nessa espiral, enevoado nas recordações. Não me arrependo de nada, mas nada também me seduz tanto que me fizesse recomeçar ou repetir. Há um tempo para tudo e o meu é agora. Neste preciso instante.

    

     Talvez seja esse o meu maior segredo. Quebrar amarras, viver o presente. Deixar que o futuro me traga surpresas, mesmo as mais óbvias. Saber olhar à minha volta e sentir-me envolvido num pulsar que me dá uma sensação de vida latente. Não entendes, eu sei. Nem toda a gente é capaz. Não é nenhuma qualidade, antes um defeito ou pesadelo. A cabeça fervilha de ideias, o corpo estremece e depois vem um estado de embriaguez. Ficamos sem objectivos, sem saber quem somos, duvidando da nossa razão de existir. É por isso que o meu refúgio secreto de pouco vale. Nele não vais encontrar quase nada. Apenas eu, como sou. Com me dou. Ausente, inteiro. Neste jeito alegre e amargurado. Segurando-te a mão num breve passeio à sombra dos salgueiros do nosso rio.

 

Lisboa, 20-04-2003

 

Fraga dos medos

 

     Adélio morria devagar. Pela Fraga dos Medos perpassava um som intermitente, sibilante nas fúrias. A tarde ia caindo para lá da montanha intransponível. Só, naquele vale verdejante, rumorejando de cascatas, espelhado por um lago a perder de vista, definhava como um girassol abandonado pela luz. Ao longe, confundindo-se com a neblina, uma imagem indefinida, percorria, veloz o recorte do capacete de gelo. Adivinhava um biga, puxada por cavalos alados, comandada por um deus qualquer... Talvez o que o viesse buscar, levando-o pelos céus para uma nova dimensão.

    

     Estava fraco demais para pensar no seu último destino. Chegava-lhe o passado que lhe pesava nos ombros. Que confiara a esse mesmo destino, como uma terapia de libertação. Com os pecados que o martirizaram toda a vida. Há muito que deixara de pensar no futuro, amanhã fora sempre um novo dia de maior sofrimento. Era uma espécie de mártir acossado pelos males dos outros, que tomou como seus. Finalmente, feito ermita, refugiara-se na beleza transcendente da natureza selvagem. Mirrava agora como as cepas das árvores que haviam perdido a capacidade de se manterem de pé.

    

     Não pensava, deixava apenas o filme da vida correr num ecrã pouco nítido, embaciado pelo tempo. O menino que corria junto ao rio não era ele. Contemplava-o apenas, talvez com inveja, enquanto reunia ramos e pequenos troncos para uma lareira que o pai queria acender. E tinha de ser rápido para se livrar de uma tareia quase certa. Batia-lha por tudo e por nada. Bêbado ou sóbrio, como se fosse um ritual que não podia dispensar. A mãe, por vezes, ainda esboçava um instinto maternal, mas logo se refugiava na doçura tresloucada dos que, ainda presentes, já partiram para o mundo das sombras. Com fome e esfarrapado, assumia a condição de pedinte e de protegido pela Escola. Uns trapos usados de outros colegas levavam-no a baixar o olhar e a isolar-se de todos. Riam-se dele, apontando o dedo. As raparigas fugiam como se fosse um malfeitor. Quando não suportava mais, ficava vagueando pela margem do rio, atirando pinhas e pedras à água, numa vingança sem sentido. A professora deixara de o ir procurar a casa. Depressa se apercebeu do ajuste de contas paternal que o seu zelo representava.

 

 

     Não acabou a quarta classe. Ficou a tempo inteiro com o pai, a tomar conta da terra e do arado. A cana-da-índia com que batia nos bois começou a causar-lhe arrepios. Como se batesse em si mesmo, flagelando-se por um pecado que não cometera. O machado, lançado contra a árvore que um dia foi mandado abater, pareceu-lhe o prolongamento dos braços e de uma vingança surda. Mesmo ao lado e indefeso, o corpo do pai caiu decepado. Olhou para ele com um sorriso amargurado. E deixou-o assim, ainda por temor ou simplesmente por respeito. Talvez mais por indiferença. A mãe fora internada há alguns meses. Agora ficava sozinho, finalmente. Não sentiu nem uma ponta de remorso, como o pai não sentia quando o maltratava. Para morrer bastava estar vivo, como ele dizia. Então pronto. Condenado a tantos anos de cadeia que lhe perdera a conta, aprendeu de quase tudo um pouco, até os prazeres mais sórdidos dos homens enclausurados. Não necessariamente do mundo, mas em si próprios.

    

     Enfim liberto, sem noção do tempo e do espaço, continuara na marginalidade, com mais algumas passagens curtas pela prisão. Até que conheceu uma mulher que o tocou. Uma prostituta, também ela uma mulher proscrita pela vida. Arranjou trabalho na construção civil e montou um lar. Parecia que a redenção e felicidade haviam sido atraídas pela ferradura pendurada na porta. Um dia, acabada a obra, todos receberam dispensa do trabalho mais cedo. Saboreando o feriado inesperado, correu para casa. Empalideceu. Tomou-o um furor assassino. Mulher e amante foram espancados e esfaqueados até à morte. Com as mãos a escorrer sangue fugiu dali.

    

     Vagueando sem destino, refugiou-se na montanha. Ali, onde se lhe turva agora o olhar. Não há biga nem cavalos alados. Nem deuses para o levar. Apenas a terra que arrefece sobre o seu corpo. E uma tempestade que cai, como um bloco de cimento, em cima de um caixão a que nem tem direito. Mas a chuva torrencial soa-lhe a um rio a correr. O seu rio. A Fraga dos Medos perdeu o seu encanto.      

 

Lisboa, 11-03-2003

 

O Burro e o Touro

 

     O burro Pancrácio e o touro Furioso viviam cercas meias, numa santa ignorância de indiferença mútua. Bem, sempre tinham alguns momentos de comunicação indirecta. Quando o Pancrácio zurrava, em afirmação própria dos asnos, o Furioso bufava, baixando a cabeça até os cornos atingirem o chão e raspava com a pata direita, cavando um sulco, por onde espreitavam algumas lagartixas, inundadas pela luz. Mas o contrário não era verdadeiro. Se o Furioso sentia o apelo do nome, marrando cego contra a cerca, o Pancrácio, indiferente, parecia mais preocupado em espantar, pachorrentamente, as moscas que viam nele mais do que uns pós de comida, um capacho macio e aquietado.

           

     Pau para toda a obra, Pancrácio ainda divertia a criançada que, nos fins de semana, debandavam pela quinta. Furioso recebia, orgulhosamente, os olhares de admiração, sobretudo dos entendidos nas lides tauromáquicas. Já se via na arena, investindo, derrubando cavalo e cavaleiro, espetando os cornos em tudo o que lhe fizesse frente e, sobretudo, naqueles peões de brega e pegadores. O final da festa havia de ser dele, enfeitado com bandarilhas multicolores. O burro, talvez por Deus o ter assim criado, não tinha ambições. A palha matinal e os verdes do prado eram a sua única preocupação e riqueza. Os olhares de doçura, as festas medrosas dos seus pequenos donos de ocasião, faziam-no esquecer alguns maus-tratos da violência do trabalho. E assim viviam, quase felizes. Só que nos meandros da vida, poucas vezes podemos decidir o nosso próprio destino. Algumas vezes, porém, deixamo-lo passar ao lado.

 

 

     O Pancrácio, apesar de irracional, parecia aperceber-se disso. Apaixonado por uma burra da vizinhança, mostrava-se mais burro que nunca. Zurrava de um modo esquisito, intermitente, com uns trevos a cair-lhe da boca arreganhada e um pestanejar irrequieto, como se tivesse adquirido um tique nervoso. Ela, a burra, rodopiava e levantava a cauda. Nem zurrava, mas zurria, numa maluqueira desenfreada. Inteligente, apesar das más-línguas, o Pancrácio, de tanto pensar, forçou uma abertura na cerca e, finalmente... Os donos, perante esta paixão assolapada, concordaram em manter aberta uma comunicação permanente entre as suas propriedades, atendendo também, e, claro, em especial, aos benefícios mútuos da multiplicação da espécie.

    

     Outra sorte foi a de Furioso. Levado, ainda de madrugada, viu-se, de repente, confinando ao exíguo e sombrio espaço dos curros da Praça de Touros. Luzindo ainda nos olhos a pradaria a perder de vista, sentiu-se humilhado. Pensou, por momentos, que lhe haviam roubado a liberdade. Mas depressa se agigantou no orgulho próprio da raça. Era a antecâmara do seu sonho, sempre sonhado. Finalmente, liberto, para o seu dia de glória, fez questão de sair a bufar e com os cornos bem erguidos, ameaçadores. As palmas ensurdeceram-no. Ganhara a primeira batalha. Mas as seguintes foram demolidoras. O cavalo parecia escarnecê-lo, ora pronto para uma marrada arrasadora ora fugindo e deixando-lhe a cauda a roçar-lhe o focinho e a cabeça. Depois, o toureiro não perdoava. Cada tentativa, cada ferro espetado no cachaço. Aquilo doía, na carne e na alma. Mas ele sabia que era assim. Fazia parte do espectáculo e isso é que era importante. Mesmo que as forças lhe faltassem, tinha de derrubar cavalo e cavaleiro. Bem tentava, sempre lesto, tentando inverter a lide, mas não conseguia. E sentia-se esmorecer, com o sangue a escorrer-se, tingindo a areia da arena. Vencido, aquietou-se, reunindo forças para a pega. De esguelha, viu o forcado a citá-lo, mas manteve-se assim mais uns minutos. O suspense perpassava pelas bancadas. Ignorou o capote que o tentava colocar na direcção do grupo de forcados. De repente, contra todas as previsões, arrancou, num arranque de raiva. Espetou um corno no pegador e levou todos os forcados às tábuas. O rabejador, experiente, conseguiu mantê-lo dominado, enquanto as ajudas retiravam o forcado da cara, que se esvaía em sangue. Tonto, de tantas voltas sobre si mesmo, aceitou a derrota, saindo com as chocas, sem grande contestação. Cumprira o seu dever.

    

     Alguém disse que mais vale ser rainha por um dia do que plebeia toda a vida. Não sei se Furioso foi rei breve. E muito menos se Pancrácio foi feliz. Todos temos, ou pensamos ter, uma medida dos nossos desejos e aspirações. Também fazemos balanços, que raramente nos elucidam. Não sou de conclusões. Nem acho que se deva pensar demais. O importante, como disse Solnado, é: “Façam o favor de ser felizes!”.

 

Lisboa, 30-01-2003

 

2002

 

 Produto da Sociedade

 

     Sou um produto da sociedade. Não pedi para nascer, muito menos aqui onde estou. Desde a nascença que me condicionaram. Os meus pais e o Estado, eles com uma espécie de procuração deste, como cidadãos exemplares. E nisso me quiseram tornar. Foram as vacinas, a primeira comunhão, a escola primária, o crisma e um infindável rol de conselhos e conhecimentos, sempre voltados para fazerem de mim alguém na vida. Continuaram, com o Liceu, a Faculdade. Apertando, cada vez mais, a teia modelar. Até que me enfiaram num funil. Livre, disseram-me, mas com opções limitadas. Até podia escolher o governo do país, votando, mas sem controlo sobre as decisões dos governantes, mesmo que fizessem o contrário do que haviam prometido.

           

     A liberdade de cada um termina onde começa a dos outros. Foi a frase que me matraquearam para me explicar a democracia. Fiquei feliz. Casei, tive filhos. Eduquei-os nos mesmos sãos princípios. Menos nos religiosos, que me deixei disso há muitos anos. Porque para falar com Deus dispenso intermediários, muitas vezes pouco à altura do que apregoam. Bem prega Frei Tomás... Também faço o que ele faz porque sou humano. Porque assim me criaram. Porque a vida é mesmo feita de contradições, estúpidas, saborosas, normais. O que sou. Devo tudo a todos. Penso como a maioria iluminada que derrama boas vontades à mesa do café, no intervalo dos despiques de futebol.

           

     Deram-me uma identificação. Primeiro numa Cédula, depois num Bilhete de Identidade, com foto e impressão digital. Um Número de Contribuinte informatizado. Paguei impostos toda a vida, sem nunca poder fugir ao Fisco. Descontei para quase tudo, incluindo saúde e reforma. Até para o clube do Bairro e para o Glorioso, com as glórias que já teve cada vez mais longe no tempo. Dei horas e horas, dias, semanas, meses, anos, a causas sociais. Com filhos feitos, plantei árvores e escrevi um livro. Que ficou na gaveta, por causa de um título pouco apelativo: “Eu, produto da sociedade, me confesso”. Ninguém o quis editar e provavelmente ninguém o quereria ler. Mas alinhavei, cronologicamente, duzentas e cinquenta páginas sobre uma vida vazia.

    

     Agora, que cheiro a morte, estou sozinho. Vivo da sopa dos pobres, enquanto tiver força nas pernas que me conduzem à sobrevivência. A reforma que recebo é rateada pelos medicamentos que me vão passando no Centro de Saúde. Os patrões esqueceram a Segurança Social. Eu, crédulo no Mundo, só tardiamente o entendi. Mas ainda sou rico, em mim. Conservo alguns fatos de outrora. Passeio pelos Jardins, alimento os pombos com restos de comida que encontro. “- Lá vem o doutor!”. Ajeito a gravata, desbotada. Aperto os botões do casaco sarrafado, como os políticos quando falam. Escondo as misérias na única coisa que me deixaram. O orgulho.

           

     Sei que vou morrer assim. De pé. Um dia destes, cometendo o crime de pisar, de cair sobre a relva. Será a minha primeira e última infracção à lei dos homens. Os que me deixam acabar assim. O Estado, em quem acreditei vir a tomar conta de mim. Mandei-lhe facturas. Dívidas de um cidadão exemplar que exige a contrapartida. Nada. Nada. Até sugeri, como garantia, o único bem que me resta. A casa velha, despida, ameaçando ruir o teto. Nem Bancos nem Estado. Nada. Nada. Velho demais. Cidadão anónimo, com prazo vencido. Dos filhos não sei do rasto. Os amigos foram-se afastando pelo caminho. Os verdadeiros estão dispersos pelos cemitérios de Lisboa. Nem a esses me poderei juntar, para retomar velhas cavaqueiras. Devem-me enterrar numa vala de indigentes. Seria melhor atirarem-me ao mar. Deixarem-me fazer as viagens que nunca fiz. Alimentar os predadores. Seria útil alguma vez na vida.

           

     O Estado, esta Sociedade, criou-me e mata-me. Devagar. Saboreando esta carne podre. Num canibalismo tolerado, mórbido, lambendo a lepra. Muitos outros vão ficar assim, algum dia. Olhando para trás, mordendo a raiva, quedar-se-ão humildades e impotentes. Talvez nem fato nem gravata ainda tenham. Apenas os trajes de andarilho, com a barba comprida e suja. A pele coberta de pústulas. Mas, nos que determinam as mortes indignas, haverá um remorso mais doloroso que a dor dos indigentes. Um achaque por cada dia de poder efémero. Por cada pecado sem perdão. Terá todos os cuidados de saúde dos ricos, mas morrerá como os pobres, hirto, feio, com discursos de ocasião. E terra por cima. O corpo será comido pelos mesmos vermes. Igualdade e justiça, finalmente!

 

Lisboa, 25-11-2002

 

Sinfonia do Rio Livre

 

     Deixa-me explicar-te umas coisas... Namorar apenas com beijinhos e carícias correctas é amor distante, ausente, sem paixão. E amor sem paixão é assim como um cafezinho com leite, em que o branco é apenas levemente tingido. A cafeína faz falta. Acorda os sentidos. O amor sereno tem tempo, demasiado para viver de recordações e de lamentos pelo tempo perdido. Ter lugar e espaço próprio para carícias mais íntimas é falsa premissa, mesmo numa relação estável.

    

     O compasso deste dueto não tem regras fixas. Do andante ao alegro basta uma nota solta. O vibrato acende as emoções. O violino canta, os dedos fundem-se com as cordas. O corpo estremece, reclama. A música exige toques, acordes. Sensações, quentes, húmidas. Sem finale necessário. Há valsas que não têm de percorrer os Danúbios da nascente à foz. Podem bem aquietar-se algures na margem, de mãos dadas. Saboreando pequenos percursos. Infindáveis momentos de prazer. Simples nadas.

    

 

 

     Estar apaixonado é como uma sinfonia de andamentos súbitos. Reescrita e interpretada constantemente. A dois. Ao sabor da inspiração, do repentismo do tacto. Do odor que emana dos corpos em ebulição. Então deixa-se a água correr, esquecendo os limites geográficos. Solta, livre, contornando obstáculos. É assim que os rios nascem e fazem os leitos. E até os rios acariciam as margens. Trazem e levam. Dão e recebem. As pedras alisadas pela correnteza são testemunho desse amor inconformado.

    

     Nunca entendi porque se classifica alguma natureza de morta. Mesmo transporta para a pintura, ela vive, transforma-se aos nossos olhos, num processo de recriação. O movimento captado das águas de um ribeiro, por mais perene que seja, leva-nos para além do quadro. Coloca-nos no tempo e no espaço que imaginamos. Sentimo-nos contagiados, envolvidos pela paisagem. O som e os tons, a frescura, entram pelos ouvidos, pelos olhos, pela pele, difundindo-se no corpo, enchendo vazios.

    

     É dessas carícias que falo. Não há amor correcto nem envergonhado. Há apenas amor. E, enquanto há vida e lume, é a paixão que o acende. As notas que se soltam dos nossos corpos são a sinfonia que nos embala. Numa sala em que somos os únicos actores e espectadores. Nós. Sozinhos. No caudal dos rios que nos percorrem. Na intimidade do nosso espaço, que criámos e recriamos em cada encontro, não importa onde. Deixando curso livre às muitas carícias que ainda temos para trocar.

 

Lisboa, 19-11-2002

 

 Idos de Outubro

 

     Nos idos de Outubro zanguei-me com o meu amor. Por quase nada, por quase tudo, como nas zangas de namorados. Nem me lembro da razão. Foi assim, de repente, como os aguaceiros de Outono. Não sei se ela chorou. Eu tive as minhas lágrimas rebeldes. E uma angústia no peito, como uma garra que sangra o coração.

           

     Bem tentei, dias seguidos, esquecê-la, mas em vão. Todas as mulheres que encontrei, dispostas a substituí-la, nada me disseram. Os abraços, beijos e carícias não tinham o mesmo sabor. O calor do corpo quente, cheirando a mim. Fugi do meu mundo, do mundo dela. Hibernei algures, num refúgio da noite. Nem o barulho da música, nem as meninas prontas, nem os whiskies duplos. Mesmo de olhos fechados, era o rosto dela que via. Sempre, com maior saudade.

           

     Voltei-me para o trabalho. Quem sublima males produz mais? Não sei. Comigo aconteceu ao contrário. As letras fugiam por entre os dedos. O raciocínio perdia-se, num nevoeiro denso. Entrecortado por uma imagem. Ela. Não lia as palavras, soletrava um nome. O dela. Hibernei de novo. Agora em mim mesmo. Tentando pensar, racionalizar. Exercício sem sentido. Sem premissas, ilógico, com conclusão antecipada. Recorrente. Como se o meu corpo estivesse incompleto, uma parte ausente.

           

     Cinco dias, quatro noites. Podia ser o título de um filme, de um romance. Do meu romance inacabado. Enviei-lhe um texto, um libelo acusatório, amaciado pelo tempo, mas de orgulho ferido, sem retorno. Despedida. A mensagem dela foi curta e simples: “Amo-te e sempre te hei-de amar. Adeus!”. Despedida e adeus subentendendo reencontros.

     

     Almoçámos. O amor da tarde soube melhor que nunca. A vida é assim. Magoamo-nos sem saber porquê. Reencontramo-nos apesar das juras em contrário. Revivemos do quase nada. A paixão não manda, comanda. Faz-nos e desfaz-nos. Muda-nos. Nem ódio nem indiferença. Apenas a diferença de se gostar. Dela.

 

Lisboa, 18-11-2002

 

 Distância das palavras

 

     O tempo que medeia o relâmpago do trovão dá-nos a distância da tempestade. Assim é o iato das palavras. Entre comunicador e receptor. “Olá!”. “... - Olá. Tu por aqui?”. Assim, escrito, quase não se entende a demora. Mas ela existiu, representada pelas “...”. Houve um encontro. Alguém cumprimentou outro, outra. Ela demorou a responder. Porque não estava à espera de o encontrar, porque não lhe apetecia encontrá-lo. Poderia haver muitas outras explicações, como a distracção, mas fiquemos por aqui.

           

     Podemos mesmo imaginar que ambos teriam tido, em tempos, mais ou menos recentes, uma relação íntima. Namoro, curto ou longo, com ou sem casamento à vista. E que um ou ambos, estariam acompanhados. Isso explicaria a secura do cumprimento, pela mágoa ou simplesmente para fazer crer ao novo companheiro ou companheira que nada de mais se passava. Conhecidos, talvez até amigos, mas nada mais.

           

     Só que ele tomou a iniciativa. Disse: “Olá!”. Temos então que, provavelmente, estaria sozinho. Caso contrário, tentaria evitar o contacto. Ela, por sua vez, estaria magoada ou com outra pessoa. Em ambos os casos, seria expectável a hesitação e as palavras de circunstância. Mas, vamos supor que estaria apenas magoada. Quis, então, responder com distanciamento. Como se lhe dissesse: “- Porque te diriges a mim? Não sabes que está tudo acabado entre nós?”.

    

     Podíamos desenvolver o exercício, levando-o, com algum romantismo, a um final feliz. Não é essa a ideia. O que queremos procurar é mesmo a razão das demoras, dos hiatos. A ausência de resposta imediata tem, geralmente, uma razão subjacente. Autodefesa, fundada na desconfiança. Pondera-se. Selecciona-se, escolhe-se as palavras mais certas para o momento. Aquele momento. Não se diz o que se quer ou apetece, mas o que se entende poder ser dito, dadas as circunstâncias.

    

     Cria-se, então, um equívoco. As palavras são perceptíveis, interpretáveis, mas não correspondem aos sentimentos dos interlocutores. Projecta-se uma imagem que não é real. Mostra-se, por vezes, o reverso do que somos ou, mais provavelmente, das emoções que nos perpassam. Com o significado perdido, aumenta-se a distância. Se nenhum conseguir subentender a falácia da vontade pretensamente expressa, expandem-se as areias de um deserto, cada vez mais, sem retorno.

    

     Simplesmente, porque não se usaram as palavras certas em tempo útil. Apenas porque não as despiram de preconceitos, de orgulhos feridos. Porque, quando a relação é de amor, ficamos assim. Perguntando ao contrário do que queríamos ouvir. Respondendo na razão inversa do que gostaríamos de dizer. Ficamos tolos. Bobos sem graça. Palhaços de um circo em que só podemos rir de nós próprios. Únicos artistas e espectadores da comedia da vida.

 

Lisboa, 17-11-2002

 

 Reconciliação

 

     Peregrinando, vou subindo escadas, separadas por patamares brancos. Uns quantos quadros, sem assinatura, ameaçam arrancar os pregos enferrujados da caliça. Um corredor escuro prolonga-se sem fim à vista. Portas, muitas portas, de ambos os lados. Quase todas fechadas. As poucas abertas batem ritmadamente. Nalguns patamares, chegam gritos finos, que parecem vir do fundo de um precipício. Fantasmas encurralados. Prestando contas à vida. Sons inumanos, que gostaria de entender.

           

     Os degraus ficam mais lentos, as pernas pesam. O corpo pede repouso. O ânimo desaba. Entro no corredor, focando o caminho. A escuridão transforma-se numa penumbra enevoada. As portas fechadas têm um selo que não decifro. As abertas desnudam cubículos cinzentos, forrados com o pó dos anos. Nada. Nem um objecto que recrie qualquer memória. E todos iguais, monótonos, vazios.

           

     Quase por teimosia, vou até ao fim. Uma porta final, fechada e sem selo, de um branco encardido. Uma maçaneta dourada, ainda brilhante, convidava a abri-la. Hesitei. Sobreveio-me um medo incontrolado. Mas, uma vontade mais forte conduziu-me os movimentos. A porta rangeu, como um gemido de dor acumulada. Cerrei e voltei a abrir os olhos, na esperança de distinguir contornos, num ambiente de noite absoluta. Nem uma réstia de luz perpassou o impenetrável.

           

     Um calafrio percorre-me os nervos. Não estava sozinho. Fantasmas, que não via, comunicavam comigo na linguagem dos sentidos. Desfiavam rosários de pecados, arcando com os males do mundo. Convencidos que a culpa adia a morte definitiva. Não disse nada. Um fio de sol havia vencido a frincha de uma janela. Escancarei-a sobre um descampado verde, terminando numa montanha perdida nas nuvens. Voltei para trás, percorrendo cuidadosamente todos os recantos do torreão do Castelo onde estava aprisionado. Nenhum vestígio de fantasmas. Apenas tufos de ervas entre os intervalos das pedras. Entre o chão e a parede uma papoila teimara em crescer. Apanhei-a. Com ela na mão, olhei para o corredor, agora claro, com todas as portas abertas. Debrucei-me na janela, respirei fundo e deslumbrei-me com a paisagem. Foi nesse dia que me reconciliei comigo mesmo.

 

Lisboa, 13-11-2002

 

Sem lágrimas

 

     Já não tenho mais lágrimas para chorar. Secou a fonte. As torrentes intensas e intempestivas consomem tudo. Deixam apenas uma marca, um sulco profundo. Por fora. Dentro... Não quero falar disso. É ainda um vulcão que derrama lava incandescente. Que faz estremecer a cada momento. Saí da alma e durmo ao relento, com medo de novos abalos. Das réplicas, que mantêm o estado de alerta e, ao mesmo tempo, lembram o poder da natureza humana. Que vêm lá do fundo, sem controlo da razão – pretensamente fria, calculista, repetida sempre. A pedra não resiste à lava quente. Derrete. Os instantes de sossego são breves. Entre uma e outra erupção, o choque tectónico vai amolecendo a vontade. Vai esfumando os motivos. Até que não sabemos mais... Mas a actividade vulcânica não é permanente. Quando acaba, por vezes, muda definitivamente os caminhos. Cria uma ilha de areia, um pequeno deserto. Sem oásis, sem esperança.

           

     Tinha de ser assim. A indiferença é nada. Era como me vias. Como eu te sentia. Uma carícia, um beijo... Inoportunidade, tempo. Breves minutos, alguns segundos, era o que te pedia apenas. Nem a tua mão senti mais na minha morrendo de carinhos. “- Para quê?”. A vida também é feita de pequenos nadas. Quando se ama. Talvez fosse a forma de queres acabar com uma situação que já não suportavas. Entendo. Sempre entendi. Sempre me senti culpado. Coisas aprazadas, em dia fixo. O tédio. A vida a correr, a decorrer sempre igual. A instabilidade... As fugas sem escape. Umas tantas por ano. E a última... A última magoou-me. Sei que fiz uma cena de ciúmes, estúpida. Tu perdoaste, prometeste esquecer. Mas senti que era mais importante para ti prolongar aquele jantar do que estar comigo. A minha surpresa, guardada até à última hora, não foi suficiente para te motivar para uma noite a sós. Sei que não convives e tens poucos amigos. Sei disso tudo. Das tuas frustrações, dos teus medos e receios. Sabes que gostava de partilhar a vida contigo. De te fazer feliz, em plenitude. Não posso. Desculpa. Palavra repetida, muitas vezes engolida em silêncios magoados, sempre que o lembras, a quase todo o instante. Que venho usando como bálsamo para mim próprio, sublimando a ausência... Tu sabes de quê. Das palavras, dos afectos.

           

     Fico a pensar que sou uma espécie de não-sei-quê. Que tem algum préstimo, de vez em quando. Talvez, ainda, confessor, conselheiro, amigo. Gosto também de todos esses papéis. Mas um “obrigado” não é o mesmo que um beijo, uma carícia, um sorriso, um simples olhar, quando se ama. É isso que me magoa. E, por maior que seja a minha culpa, isso dói. Sei que estou a ser injusto. Desculpa, de novo. Somos sempre injustos quando temos feridas abertas. Mas, deixa-me pensar assim. Esquecer que foi depois daquele jantar que percebi a tua indiferença. Que tentei, desde então, reacender a nossa chama. Mas, talvez, tenha contribuído apenas para apagar uma promessa de cera já ardida. Por isso não resultou. “- Para quê?”. Para quê, se não há futuro? Para quê se hoje até é o dia de... Deves ter razão. Tens sempre razão. E eu apenas tenho desculpas. Tens direito à tua vida. Frase também recorrente e, confesso, com muitas pontas de ciúme. Mas é assim. Objectivo, como tu gostas de ser, rebuscado na razão que medeia os intervalos maiores das erupções vulcânicas. As veias acendem-se, ainda, de sangue quente. Explodem em arco-íris de culpa e raiva. Não de ódio, nunca de ódio. Até que um dia, feito de lava solidificada, não chorarei mais.

    

     Secarei de lágrimas e sonho.

Lisboa, 04-11-2002

 

Vem de mansinho

 

     Vem, assim de mansinho, aninhar-te no meu colo. Abandonas a cabeça cansada no meu ombro, fechas os olhos, transpondo-te para aquele sonho que querias sonhar a dois. É apenas um breve intervalo, eu sei. Abraço-te com força, até fingires um gemido de dor. Então os lábios colam-se. E assim ficamos. Breves instantes de um momento quase eterno. Falamos de banalidades, trocamos carícias, misturamos as almas. A tarde passa, arrefecendo os corpos. É hora de nos devolvermos à realidade...

           

     Paro junto do mar, com o carro vazio. Olho o horizonte, o sol trémulo que agoniza em esplendor. De corpo vazio também. Só, intrigado com os mistérios da vida. Irritado com a perfeição das imagens. Do mar, das ondas, da espuma tingida de arco-íris. A minha mente navega. Fico assim, absorto, inerte, olhando agora o nada. Vem-me um sorriso aos lábios. É assim que tu ficas também, quando sonhas ou, simplesmente, resolves refugiar-te naquele espaço em que nem eu penetro.

           

     Uma gaivota atrevida pousa no carro. Voltada para mim, como se me observasse. Acordo para ela, questionando-a. Ela entende. Abre o bico e solta uma lamúria. Um conselho, uma recriminação... Não soube interpretar, talvez o mais óbvio. Ela entendeu. Zangada, bateu as asas e voltou-me costas. Senti que tinha levado algo de mim. Muito, pouco, não sei.

    

     Sobreveio-me uma angústia sem explicação. Saí do carro, inquieto. Abri os braços, levantei a cabeça e respirei a natureza. O vento rodara para sul, soprando de frente, fustigando-me com os salpicos das ondas. A gaivota voltara, acompanhada do bando. Executavam uma dança em meu redor, numa algazarra ensurdecedora. Soltei um grito, um rugido de fera ferida, encurralada.

    

     O vento amainou, o mar aquietou-se, as gaivotas pousaram a uma distância prudente. Fiquei então a saber que, quando me liberto, posso mudar o Mundo. Mas não o meu mundo. Perto dos outros, longe de mim. Eu sou assim...

 

Lisboa, 08-10-2002

 

Surpresas dos chats

 

      Conversa no Canal Amigos, por voltas das 17 horas.

 

   Olá. Já estava com saudades tuas.

   Eu também...

   Só nos conhecemos há 3 dias e já só penso em ti... acho que...

   Achas o quê?

   Que estou apaixonado por ti.

   A sério?!

   A sério, não penso em mais nada.

   Eu também. Não sei como é que estas coisas podem acontecer por aqui.

   Também eu, mas o que sei é que me apetece muito conhecer-te pessoalmente.

   Ih, ih... e que me fazias se nos encontrássemos?

   Cobria-te de beijinhos e... é melhor não dizer.

   Diz, diz...

   Apetecia-me fazer amor contigo!

   Sabes, também me apetecia... Devo estar a ficar maluca.

   Não estás nada. Mas acho que temos mesmo de nos encontrar. E gostava que fosse ainda hoje. Não aguento mais!

   Hmm... Só depois do trabalho. Seis horas?

   Não posso. Só acabo às sete e meia. Não pode ser às oito?

   Não. A essa hora tenho de estar em casa, porque o meu marido traz os miúdos e é preciso dar-lhe banho, comida, etc..

   Quantos tens?

   Dois, um com 2 e outro com 6 anos. E tu?

   Eu também, que curioso.

   Devemos ser almas gémeas... Assim ainda fico a gostar mais de ti.

   Eu também. Temos mesmo de nos ver. Vê lá se consegues fazer com que o teu marido fique com as crianças.

   Não me parece, ele é um bocado chato e deve chegar mal-humorado. Vem sempre cansado.

   Sei como deve ser. A minha mulher também é assim. Ficou sem piada nenhuma. E à noite ainda parece que fica pior.

   Na cama, queres tu dizer?

   Sim, claro... Está sempre com dores de cabeça... rss.

   Por cá não anda muito longe, mas o pior é que ele não me satisfaz e já quase nem me apetece. Entendes?

   Entendo muito bem. Mais uma razão para o nosso encontro. Vê lá se consegues...

   Não sei se vai dar. Ainda pregar uma mentira ao marido não me incomoda muito, mas o chato é deixar o Pedrito sozinho, o mais velho, porque está engripado.

   Pedrito?!... O meu mais velho também se chama Pedro. Que coincidência.

   Não me digas que o mais novo se chama José...

   Sim... Bom, isto é que são mesmo almas gémeas. Agora é que o nosso encontro não pode esperar nem mais um dia!

   Tens razão. Cá me arranjo para me encontrar contigo às oito. Também quero muito! Onde nos encontramos?

   Onde moras?

   Benfica. E tu?

   Também... Livra, só faltava vivermos no mesmo prédio.

   Rua República da Irlanda, 6?

   Não pode ser!.... António?!

   Maria?!!!...

   !!!...

 Lisboa, 25-08-2002

 

 Encontro futivo

 

     Abel e Maria conheceram-se pela Internet. O MSN Messenger passou a ser o ponto de encontro e de conversa de muitas noites, em que falavam de tudo um pouco. Do trabalho, dos livros que liam e dos que Abel escrevia ou tinha a esperança de vir a publicar, dos amores e desamores, até das coisas banais do dia a dia. A pouco e pouco, para Abel, teclar era como que um pretexto para este encontro virtual, onde a realidade começava a estar, cada vez mais, eminente. A proposta de troca de fotos, por email, foi bem aceite por Maria. Uma mulher morena, bonita e com uns olhos irresistíveis. Abel, com os seus quarenta e oito, sentia-se lisonjeado com a atenção que lhe dedicava aquela jovem de apenas 25 anos. Algumas vezes, sugerira um encontro mas ela recusara, com argumentos e delicadeza que o faziam sentir um pouco incomodado consigo mesmo. Na verdade começava a alimentar uma certa paixão, um desejo incontrolável, que não conseguia reprimir, mas não deixava transparecer. E, por isso mesmo, repreendia-se, como se houvesse ousado desafiar os padrões mais elementares da moral.

           

     Inibido por uma culpa que, não sendo deliberada, lhe pesava já quase como remorso, Abel decidiu, talvez em jeito de penitência, deixar de comparecer no chat. Os dias passaram e Abel quase esquecera Maria. Mas, um mail dela, acusando a ausência e protestando saudades, alteram o curso dos acontecimentos. No tc seguinte, Maria falou-lhe de um livro que estava a ler – Filha da Fortuna, de Isabel Allende -, com a certeza de que ele iria adorar. Abel elogiou o Delfim, de Abel Cardoso Pires, leitura recente e inacabada. Inesperadamente, Maria propôs-lhe a troca de livros, na semana seguinte, num Café próximo do local de trabalho. Abel vacilou, mas não foi capaz de recusar. Trocaram os números de telemóvel, para confirmarem a hora e os pormenores do encontro. A espera foi longa e de sentimentos contraditórios, para Abel. Até que assumiu ser inevitável conhecer pessoalmente Maria. Numa, das muitas desculpas usuais em casa, explicou à mulher que tinha um jantar com amigos e que, provavelmente, viria tarde.

           

     Saiu muito antes da hora marcada e telefonou a Maria. Ela estava atrasada, por problemas imprevistos no trabalho. Abel mostrou-se compreensivo e pronto a esperar, mas sugerindo, nesse caso, que jantassem. Maria concordou. Local e hora redefinidos de acordo com as novas circunstâncias. Mas, o que ficara da primeira conversa telefónica era algo imprevisto. Tinham falado como se fosse usual fazê-lo, como se fosse um meio de comunicação normal de duas pessoas que se conheciam há muito. Na verdade, ia pensando Abel, enquanto bisbilhotava algumas lojas da baixa e considerava a renovação necessária dos fatos que habitualmente usava, já se conheciam, mas apenas pela Net. E era conhecimento suficiente, porque tinha visto e decorado a foto dela e, bem vistas as coisas, o virtual não é tão irreal assim. Há emoções, sentimentos, que se transmitem pelas palavras. Sabe-se como são as pessoas pelo que elas dizem. É, sem dúvida, a forma mais certa e genuína de empatia, de cumplicidade. É, também, o modo mais abstracto, mas mais seguro, de apreciarmos as qualidades intrínsecas, buscando a verdade da alma e não a beleza efémera do aspecto físico. Claro, pressupondo que os interlocutores do chat põem a verdade na ponta dos dedos. Mas, neste caso – continuava a congeminar Abel -, isso nem se questionava, porque teclavam há tanto tempo que seria impossível dissimular os carácteres de cada um.

           

     Maria atrasou-se ainda mais. Abel já quase desesperava, mas uma secreta e quase firme esperança mantinha-o fiel ao compromisso. Ligou-lhe. Ela respondeu quase no limite do tempo que passa a mensagem automática. Estava a chegar... Ali mesmo, quase frente a frente, ambos com o telemóvel na mão. O riso sobrepôs-se ao quase ridículo e dispensou as apresentações formais. A conversa discorreu normalmente, como nos tcs. Afinal, deverão ter pensando ambos, a Internet não é tão virtual como pensávamos... O jantar, tendo como prato principal e único, o frango no espeto, com arroz de miúdos, acompanhado com um vinho branco alentejano fresco, foi permitindo o complemento do conhecimento mútuo. Maria era gulosa. Apesar de satisfeita e renitente, não resistiu, com pouca insistência, a um bom gelado como sobremesa. Abel acompanhou-a com uma mousse de chocolate caseira. Um descafeinado e uma bica remataram o jantar.

           

 

 

     Mas ainda era cedo. E a vontade de ambos era continuar o tc real pela noite fora. Um Jazz Clube do Bairro Alto foi o destino. Uma amarguinha e um wisqui foram pretexto para uma conversa mais animada, cada vez mais íntima. O olhar incendiava-se, as mãos tocavam-se, acariciando-se sem razão aparente. Abel já não pensava, estava cativo daqueles olhos deslumbrantes, irresistíveis. As horas não contavam, mas a vontade imperava. A música era um apelo a novas descobertas. Sem darem conta, desceram ao Terreiro do Paço, percorreram a 24 de Junho e entraram na marginal para Cascais. A beleza nocturna da linha quase passou despercebida. O Guincho, iluminado apenas por uma lua ténue, tentando impor-se a uma noite semi-nublada, mas calma de vento, era um apelo a um passeio. Abel e Maria descalçaram-se, experimentando o raro acolhimento da areia da praia demandada por surfistas de todo o mundo, agora deserta. Sentaram-se, contemplando o mar, adivinhando estrelas apagadas. – E se fossemos tomar um banho? – És louco? – Pois... – Mas, também não está ninguém nas proximidades... Será que a água está fria? – Deve estar um pouco, mas só tentando é que podemos saber.

- Vou tirar a roupa, olha para o outro lado. – Quase não me vejo a mim mesmo, quanto mais a ti... Está bem, não olho.

           

     Abel e Maria despiram-se. Ele manteve a promessa, apesar da tentação de ver a silhueta nua da sua companheira, virtual transformada em realidade palpável. Quando ela se pôs em movimento em direcção ao mar, agarrou-lhe a mão e foram descendo, ouvindo o marulhar das ondas, distinguindo os rolos de espuma que humedeciam a areia. A água poderia estar fria, mas nenhum arrepio perpassou pelos corpos nus. Entraram, confundindo-se com a brancura acinzentada da noite, com o azul perdido do dia. Até quase não terem pé. Ali ficaram, olhando a praia quase adivinhada, tocados por réstias intermitentes de teimosos raios da lua, ciosa da sua função romântica, mesmo quando a natureza impede que se espraie sobre os amantes.

           

     Abel, aproveitando ao impacto de uma onda maior, puxou Maria para junto de si, abraçando-a. Ela aconchegou-se, como se esperasse esse impulso, rodeando-lhe o pescoço com os braços. O primeiro beijo, prelúdio de muitos outros que se seguiriam. Os lábios colaram, quase se machucando, as línguas enrolaram-se, saboreando-se, entranhando-se. Abel agarrou Maria pelas nádegas, escorrendo as mãos e fazendo-a subir, com as pernas abertas, até à altura do pénis. Segurando-a, assim, com uma mão, introduziu-o com a outra dentro da vagina. Ela gemeu de prazer e de incredulidade, enquanto ele a fazia movimentar, com ambas as mãos pressionado as coxas. Quase nem era necessário. O movimento das ondas assegurava o coito com quase perfeição. Ao mesmo tempo, Abel chupava-lhe os mamilos, alternando, sentindo-os a endurecer, à medida que o desejo e prazer iam aumentando. Maria mordiscava-lhe as orelhas, violando-as com a língua, lambendo-lhe o pescoço. O pénis escorregava pela vagina, num vaivém imparável. A lubrificação que escorria desfiava pela água do mar que entrava. As contracções apertavam e engoliam o membro duro e alongado pelo desejo até ao fundo, ao limite do prazer, quase fazendo entrar os testículos, batidos, esmagados na púbis e nos lábios exteriores entumecidos. De repente, mas em sintonia, ambos pararam. Abel contraiu as mãos, colando-a ainda mais a si. Ela crispou o abraço, quase o sufocando. A torrente de lava explodiu. Ambos de olhos fechados, iluminando a noite. Foram minutos intermináveis, dentro um do outro, sentindo os prazeres inexplicáveis dos orgasmos inesperados.

           

     Abel e Maria saíram do mar, atordoados. Já em terra firme, próximo das roupas abandonadas, ela ajoelhou-se na areia e quis saborear os últimos vestígios de sémen de um pénis quase moribundo.

 Lisboa, 16-08-2002

 

Palavra perdida

 

     Perdida, a palavra escapou-se pelas frinchas da porta, entrando na noite. Cá fora, sob um céu de estrelas ténues, realçando o esplendor da lua, a palavra ouviu o sussurro suave dos pinheiros, o marulhar das ondas calmas na praia deserta. Repousou na areia molhada, entre o mar e um bando de gaivotas, cansadas de gentes e algazarras.

    

     Ali, antes que a brisa a fizesse perecer, disseminando os seus significados, a palavra reflectia na vida breve das palavras inúteis: dúbias, quase insondáveis, disparadas à queima-roupa como flechas incendiárias, murmuradas com raiva, pronunciadas com o desprezo do gelo recém-formado, balbuciadas como lamentos magoados ou, simplesmente, porque é hábito fonetizá-las.

           

     Ela era a essência e síntese de tudo isso: um simples “Não”, que não devia ter sido dito, mas fora-o. E quando as palavras são ouvidas não se podem apagar, ficam, entranham-se. O “Não” que talvez fosse “Sim”, se os olhos se olhassem e a couraça do orgulho, alimentando pela inércia, derretesse, ressoara como um trovão, auge de tempestade, dilúvio avassalador, incêndio que desafiava as leis da física.

           

     E agora estava perdida, irremediavelmente, sem sentido e utilidade. Agarrando-se com todas as suas forças aos grãos de areia, ainda esperou um derradeiro chamamento, uma reconversão, nem que fosse num duvidoso “Talvez”, mas nada. Nenhuma boca se abriu para redefinir o seu verdadeiro significado. O piar doentio de uma gaivota ferida foi o último som que a palavra perdida escutou.

 

Vilamoura, 10-08-2002

 

Tá tudo louco!

 

      -   Olá!

-  Olá, querida. Como tens passado? E a família?

-  Estamos todos bem. O Tadeu é que tem andado um pouco apático, até já fui ao médico com ele.

-  É grave?

-  Diz ele que não, que deve estar com saudades da Julinha, aquela do doutor que mora no 3.º F. Lembras-te dele?

-  Sim, claro, o bonitão que tem o Jaguar e a mulher até parece que veste nos ciganos.

-  Esse mesmo. Mudaram-se a semana passada para uma vivenda em Cascais, que ele comprou...

-  Também com o ordenado que o homem tem como administrador daquela empresa...

-  Vê lá como são as coisas. Um homem assim, com uma mulher daquelas... Perdi uma boa companhia depois do jantar, era um homem muito simpático. E o Tadeu, coitadinho, deixou de ver a sua Julinha. Gostava muito dela...

 

      Bom, isto começou mal. Não era bem isto que queria escrever. É que assim não vão entender nada e a mensagem vai ficar irremediavelmente perdida no meio de uma charada sem sentido. Vamos recomeçar...

 

-  Olá! É menino ou menina?

-  Olá, querida. É menina... Ó Julinha! Espera pela mamã!

-  Que gracinha... O meu Tadeu é que não anda nada bem, coitadinho...

-  Que lhe aconteceu?

-  Então não soube? Teve um ataque cardíaco e quase morria. O doutor Salvado está a observá-lo de dois em dois dias...

-  Coitadinho... Ele ainda é muito novo...

-  Pois é. Mas está a reagir bem, graças a Deus. Tenho é de estar sempre atenta ao que come, porque ó médico disse que o ataque se ficou a dever ao excesso de gordura. Agora está em dieta rigorosa e vai ter de perder alguns quilos. E não queira saber, tenho de me levantar duas vezes por noite para lhe dar os medicamentos...

 

      Não, assim também não vamos lá. Que diálogos sem sentido, que mensagem mais enviesada, que ausência de conteúdo, que prosa mais vulgar e incipiente. Mas como não sou de desistências, vou tentar de novo...

 

 -  Olá!

-  Olá, querida. Hoje ainda não vi o Tadeu.

-  Está com o meu marido. Foram a Azeitão, ver as obras da vivenda... Ah, mas esta fofinha continua linda... Olá Julinha... Tens saudades do Tadeu?

-  Ela adora-o! Sabes que agora a levo para o serviço?

-  Ah, sim? Estou a ver... Os teus colegas ficam todos à volta dela a apaparicá-la.

-  É verdade. O trabalho até ficou mais alegre e agradável. Ela não pára quieta e anda por todo o lado.

-  E o director?

-  A princípio não gostou muito da ideia, mas ela foi tão meiguinha com ele que o homem agora até lhe vem trazer umas bolachinhas. Imagina...

 

Mau. Acho que vou mesmo desistir. Condescendo que não estou a conseguir contar a história que pretendia. Há dias assim. Não é pela ausência de matéria, mas por incompetência minha, aceito. Só para não dar o braço a torcer vou tentar pela última vez...

 

 -  Olá!

-  Olá, querida. Que novidades há pelo burgo?

-  Muitas! Sabes que a nossa vizinha do 1.º G vai casar com o engenheiro que mora no 6.º C?

-  Não me digas... Mas ele é casado!

-  Ainda, mas vai divorciar-se!

-  Essa agora... Não sabia de nada...

-  Foi assim... Aqueles passeios depois do jantar à volta do prédio. Ele com o Tadeu, ela com a Julinha... Conversa e mais conversa...

-  Ai, estou a ver... Realmente... Saíam quase sempre à mesma hora e demoravam a voltar.

-  Pois era. E depois ele começou a vir almoçar a casa e a levar o Tadeu a casa dela, com o pretexto de ver a Julinha... E pronto!

 

     Pronto, digo eu. O prometido é devido. Quando não se tem jeito para contar uma história não se deve insistir. Portanto, desisto, finalmente. E vou dormir que já se faz tarde. Quero lá saber que o Tadeu e a Julinha sejam os heróis caninos de uma história que eu não soube contar... Tá tudo louco!

 

Lisboa, 16-07-2002

 

Estranhas emoções

 

     O homem tinha duas lágrimas rebeldes ao canto dos olhos, hesitantes em tombar. De resto, não mostrava qualquer sinal de tristeza ou de outra emoção, não fora um certo contrair dos músculos do rosto, como se quisesse reter só para si o seu próprio universo.

           

     A morte não o assustava e quase nem o comovia. Passara já pela antecâmara que desfila a vida e atenua os medos de quem tem poucas contas a dar a si mesmo e, muito menos, ao mundo. Vivera em pleno, dando-se e exigindo, recebendo quase sempre por inteiro. Dera à sociedade o contributo que achara devido, intenso mesmo, durante muitos anos. Estava, portanto, quite consigo e com os outros.

           

     Podia morrer serenamente, como quem está receptivo a um sono profundo, sem sonhos nem fantasmas. Porquê então aquelas duas lágrimas rebeldes que teimavam em avolumar-se, agora desabando como uma enxurrada inesperada, repentina como as ribeiras de Inverno?

           

     Não eram por ele. Nunca chorara por si próprio, sempre por alguém. Nunca se dispensara comiserações, apenas reparos. O seu coração, trespassável, amolecido pelas paixões, encantava-se e sangrava facilmente com os pequenos nadas que preenchem a vida. Com os quase tudos que lhe dão o verdadeiro sentido. O pleno significado da existência.

           

     Porque chorava então agora, como os regatos intempestivos, revisitando os recantos da vida? A mão... A resposta estava na mão que segurava, já sem vida, mas ainda morna de muitos sonhos sonhados a dois. Os olhos da companheira haviam-se cerrado há muito, mas ele teimava em prolongar o pacto firmado. Não perante a Igreja ou o Estado, apenas com um beijo solene sob o céu estrelado de uma noite mágica: “Até que a morte nos separe!”. Era essa a morte que não aceitava...

 

Vilamoura, 28-06-2002

 

Qualquer coisa

 

     Vou escrever qualquer coisa. Nem que seja para manter o jeito, se é que algum dia fui capaz de ajeitar as letras, transformando-as em palavras com significado. Pior ainda é pegar nos vocábulos e dar-lhes um sentido, se não lógico, pelo menos percetível para transmitir uma mensagem que chegue fresca, revibrante e apetecível ao receptor. As funções da escrita são tão simples e complexas ao mesmo tempo. Há quem se exprima melhor escrevendo, diz-se. Mas, a verdade, é que na fala tudo se desculpa. Na escrita não.

           

     Quando se verbaliza, a dicção, o estado emocional, a situação concreta em que o diálogo tem lugar, o próprio interlocutor, são elementos determinantes para desculpar os erros, os hiatos, os excessos, a vulgaridade. Até  as expressões de sentidos múltiplos, são compreensíveis por meros códigos visuais, como um simples piscar de olho, um sorriso sarcástico.

           

     Quando se escreve, tem de se explicar quase tudo, com excepção apenas do que pode ser imediatamente percetível pelo contexto. E é ai, que as palavras pesam.  Porque são medida, lugar, acção, emoção, sentimento... São tudo o que o escritor tem para transmitir o que gostaria que os outros lessem e interiorizassem. Mas quem escreve pode não ser capaz de oferecer a visão da realidade que descreve ou ficciona, porque tudo o que se firma no papel é real, mesmo na imaginação. E quem lê pode não estar predisposto ou também não deter a capacidade de entender e assimilar o que o escritor lhe quis transmitir. Porque esta relação é essencial para o objectivo da escrita, as palavras são perdidas, ficam sem sentido. Paradoxo da comunicação por símbolos. Inutilidade do papel tingido.

           

     Mas, quem escreve é teimoso por natureza. Insiste em produzir e juntar palavras, mesmo que duvide da sua utilidade. Numa dialética, por vezes surda, que alimenta o seu próprio ego. Cria e recria, procura na memória, imagina e reconverte, desata os laços do real e fabrica a sua própria verdade. Escreve porque o impele uma vontade compulsiva de expor as palavras como pinturas nas galerias de arte, penduradas nos pequenos recantos dos sonhos que todos nós gostamos de alimentar.

 

Lisboa, 30-05-2002

 

Parábola, segundo Judas

 

     Quando se abre uma porta é necessário estar preparado para o que possa surgir para além dela. E nem todos estão conscientes desse facto. Por vezes, a ambição é maior que a prudência. A sede de poder enfraquece os sentidos. A vontade desmedida de ser e ter leva a relegar o conhecimento e a humildade para um plano secundário. E aí tudo pode acontecer.

            

     O homem foi, enquanto jovem, de causas e de ideias. Pouco ortodoxas é certo, mas pugnava pela justiça e liberdade. Coisas vulgares, terá pensado mais tarde, mudando de rumo e de convicções. Com o poder nas mãos, fez dele próprio o centro da salvação do país. Rodeou-se de gente que não ouvia, não via, nem queria saber de nada, cegos pelo esplendor do chefe. Executavam apenas, sem pensar, sem medir as consequências, aconselhando sempre com um sim timbrado.

            

     As angústias dos agora dissemelhantes não os demoviam. Era preciso mudar a qualquer preço. As pessoas não passavam de meras peças do seu xadrez pessoal, mudadas de lugar, deitadas fora do tabuleiro ao sabor das conveniências de ocasião. Perante as súplicas, a pose arrogante da superioridade, do status adquirido, acima de tudo e de todos os pobres mortais, mesmo que lhes rogassem apenas a manutenção do emprego para assegurar a comida para os filhos. Empedernidos perante o sofrimento alheio...

            

     Um dia, o homem caiu do poder. Não se apercebera, na sua cegueira irredutível, que mandara apenas porque os mandados lhe tinham conferido um mandato de esperança. Atordoado ainda, via fugirem-lhe os colaboradores mais próximos, agora adulando um novo candidato a chefe. O homem caíra no esquecimento, de repente.  Como um capacho de cores vivas que se coloca à porta de entrada, agora enrolado junto do contentor do lixo.

           

     Ciente do seu fracasso, os remorsos confundiram-lhe os pensamentos. A sede de poder tinha ditado o seu destino. Já na sua viatura particular, a caminho de casa, desatinou. A ponte 25 de Abril surgiu como uma miragem, no meio do desespero. Não via as luzes coadas por uma leve neblina, mas feixes de potentes focos, desencontrados e trespassando-se, num movimento diabólico, alucinante, chamativo.

           

     Os travões do carro chiaram. Sem se importar com os apitos e impropérios dos outros condutores, abriu a porta, saiu e colocou as mãos sobre a balaustrada. Nunca experimentara essa sensação. A ponte a balouçar com o vento, a tremer com a passagem dos carros e ele firme, como rocha, olhando o Tejo. Debaixo dele apareceu a silhueta de um navio de cruzeiro que se fazia ao mar. Três apitos de despedida. Tantos quantos ouviu o homem antes de mergulhar nas águas de inverno do rio de Lisboa, no turbilhão das hélices do navio.

 

Lisboa, 15-05-2002

 

 Debate de Espermatozoides

 

-    Ops- isto hoje está cá com muito balanço...

-    Deve ser uma namorada nova... boa!

-    O patrão está a melhorar a cada dia...

-    Mal consigo esperar o momento de mudar de corpo...

-    É a nossa realização final... o objectivo por que todos tanto ansiámos.

-    Mas... E se ele estiver a usar protecção?

-    Será inglória a nossa existência....

-    Mesmo acabadinhos de criar...

-    Acabaremos num saco de lixo qualquer...

-    Ou numa sanita... e num cano de esgoto mal cheiroso.

-    Embrulhados num plástico translúcido, de gosto horrível.

-    Negação das negações. Por isso sou contra o aborto.

-    Deixa lá. Também só alguns de nós iriam fecundar...

-    Mas mesmo assim havia a esperança...

-    Deixa lá a esperança. O que importa é sairmos daqui, cumprindo o destino. Não podemos contrariar a vontade das pessoas.

-    Olha o lindinho!.. Filósofo e desprendido!

-    Mas ele tem razão. Por mim, sentir-me-ia realizado se, mesmo acabando num preservativo, fosse fruto de uma grande paixão.

-    E prazer, claro...

-    A mim tanto me importa. Desde que saia, bem projectado, seja qual for o alvo.

-    Concordo contigo, mas gostava de sentir-me a percorrer aquele túnel, escorregadio, abrasador...

-    Pois, ou não fosses surfista...

-    Mas chegar mesmo ao destino e dar origem a um novo ser... a outro corpo... Sentir que também nós assegurámos descendência...

-    E eu é que sou filósofo...

-    Nós não temos descendência, quanto muito herança.

-    Herança?

-    Sim, em termos de genes... cromossomas...

-    O espírito científico a deslocar as questões...

-    Não deslocou nada. Disse o que tem de ser dito, com objectividade.

-    Tu também? Os humanos deviam aprender connosco este debate democrático.

-    Curto de vida...

-    E morrendo incógnito, até num simples papel higiénico.

-    Mas nós também somos humanos... Pelo menos fazemos parte deles.

-    Criados na ocasião, ao sabor das emoções...

-    Para um objectivo que é cada vez mais uma recriação...

-    Essa agora! Sempre foi assim. Voltamos ao princípio do debate.

-    Ele está a enfatizar a procriação, quando, na verdade, há muito mais do que isso numa relação sexual.

-    Mas não é essa a nossa razão de ser?

-    Não! Apesar de sermos muitos milhões, num simples momento, o nosso papel é assegurar a preservação da espécie, não necessariamente o da reprodução em cada acto.

-    Explica lá isso melhor...

-    Cabe às pessoas escolher se querem ou não reproduzir-se. Só quando o par está de acordo, medindo as consequências e alcance da sua opção, é que somos chamados a desempenhar a função específica que nos foi atribuída para a procriação.

-    Ó amarelo, e nas outras ocasiões somos chamados para quê?

-    Amarelo não, apenas sensato e realista.

-    Então o senhor realista responda à questão!

-    A nossa função geral é complementar ou completar o prazer. A função de procriar é secundária, específica, dependendo da vontade de quem nos produz e de quem nos recebe.

-    Calem-se lá!... Isto está cada vez mais violento.

-    Ainda viramos manteiga...

-    Preparem-se. A membrana está a abrir...

-    Lá vamos nós!.... Uauuuuuu!!!...

-    Com esta não contava... Que é isto?

-    Parece um lavatório...

-    Ele abriu a torneira... Ai vem o dilúvio!

-    Pelo esgoto abaixo...

-    Sem prazer nem glória!

-    Filosofa lá agora, ó lindinho!

-    Bem me pareceu que isto hoje abanava de um modo esquisito...

-    Como queriam que soubesse que o gajo se estava a masturbar?

......

 Lisboa, 10-03-2002

 
 
 

 

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